Curta Paranagua 2024

Coringa: Delírio a Dois

Quando os santos marcharem…

Por Fabricio Duque

Festival de Veneza 2024

Coringa: Delírio a Dois

Delírio. Suspensão da realidade para se refugiar na fantasia. Ter um novo eu. E ou uma nova personalidade dominante. Isso é sociopatia ou defesa-catarse à violência causada pela sociedade? Sim, não é nem um pouco simples existir como ser humano, especialmente em ambientes compartilhados de outros seres dotados de tantos individualismos, egoísmos, idiossincrasias, narcisismos, carências e dependências afetivas. Cada um vive como uma bomba-relógio, escondendo suas profundidades sombrias para não explodir suas raivas e frustrações, ainda mais quando pessoas transformam o mundo em um lugar hostil, violento e sem esperança alguma. Como sobreviver? Talvez pelo universo dos desenhos em quadrinhos, que se utiliza da ficção para abordar um reflexo de toda essa sociedade de cada época. A DC, por exemplo, trouxe o Batman, o “homem morcego”, um rico que tenta ser o salvador em uma Nova Iorque rebatizada de Gotham City, e com ele, os vilões, que, insatisfeitos com o sistema de governo, viram rebeldes com planos assassinos. Será ele um “mártir”?

Uma dessas figuras associativas, um “fora das padronizadas normas aceitáveis de conduta social”, é o Coringa, um “palhaço lunático”. Coringa é a representação anárquica que segue o pensamento de que se deve causar o caos para de forma radical mudar o sistema espectro- comportamental de governo que dita as regras no momento. Sim, Coringa é um vilão, estereotipado, que está possuindo o indivíduo, que com seus planos cruéis, atrapalha a vida dos “cidadãos de bem”. Sim, Coringa é maligno, sórdido,  egoísta, mimado, sem coração e contra tudo e todos. Sim, Coringa também é do povo, não tem dinheiro e sofre as “consequências” de ser “diferente”. O cineasta Todd Philips (o mesmo de “Se Beber Não Case!”) olhou para esse esse palhaço e o levou para a tela grande em 2019, o resultado foi ganhar melhor filme no Festival de Veneza. Por que? Porque Todd cria uma atmosfera de futuro apocalíptico, de aura sombria, de escuridão, imprimindo o realismo pessimista de que não nenhuma salvação. De que Batman é um oportunista também delirante que usa capa, mas não pode voar. 

A personagem remodelada de Coringa (numa interpretação entregue, irretocável e de tirar o fôlego de Joaquin Phoenix) desconstrói paradigmas já cuidadosamente internalizados pela opinião pública e oferece uma nova perspectiva, de dentro, mas especificamente de partes-sinapses “desconexas”. “Coringa” argumenta-se de que ele é assim por causa do meio, que causou todos esses problemas “estragos” psicológicos. Por tudo isso, quando foi anunciado de que “Coringa” teria uma continuação, e que junto de Joaquim, o elenco protagonista incluía Lady Gaga, a internet “bombou” e os fãs da cantora pop, chamados de Monsters, entraram em polvorosa. “Coringa – Delírio a Dois” foi exibido no Festival no Veneza, desta vez fora de competição. De lá, as jornalistas Flávia Guerra e Mariane Morisawa mostraram a fila gigantesca de espera (muitos dormiram nessa fila). E agora, tão aguardo, o filme chega aos cinemas. 

Preciso logo começar dizendo que “Coringa – Delírio a Dois” mantém toda a estrutura sensorial, sombria e de pessimismo do primeiro. E neste a mise-en-scène é ainda mais delirante. Todd Phillps, de novo na direção, não quer “facilitar” o entendimento, muito pelo contrário, seu desejo é mergulhar mais e mais no lado mais dark do insconsciente humano, ainda que seu final seja polêmico, destoante e mais “preguiçoso”. Mas não. Não darei spoilers, e tampouco me adiantarei. Antes de falar da interpretação de Gaga, nunca me esqueci de uma cena: a artista estava no tapete vermelho e uma mulher “protestante” gritou “Você vai para o inferno!”. Gaga voltou, foi em direção a ela e a beijou na boca. E depois respondeu “Agora, você também vai”. Então “Coringa – Delírio a Dois” já traz tudo isso no currículo: a estranheza coloquial dela no papel de Arlequina e a precisa interpretação de dentro dele. Os dois alimentam esse amor bebendo e usando a fantasia e a loucura. 

“Coringa – Delírio a Dois” inicia-se com um resumo animado do primeiro. Contando previas por desenho à moda dos Cartoons Looney Tunes, talvez a fim de potencializar ao surreal e ao pastelão a experiência (como uma permissão máxima da loucura e da indissociação das sombras). Para logo depois adentrar na atmosfera pesada da prisão. Constrói-se a iminência do medo. A crueldade e deboche violento dos guardas, tudo faz com que este filme transmita a sensação de organicidade fisiológica e de físico gestual. Arthur, o “receptáculo” do Coringa, é diagnosticado com divisão mental, que o fragmenta em múltiplas personalidades, neste caso, só o Coringa, causado pela infância problemática (abusos psicológicos e corporais), que afetou suas “áreas sombrias”, o tornando um “monstro”. A construção cênica é um espetáculo à parte: o tempo da tragada do cigarro, o jazz de Louis Armstrong, os guarda-coloridos na chuva e a câmera lenta que suspende a percepção da realidade (permitindo que possamos observar melhor seus gestos, olhares e possíveis detecções de psicoses). Sim, “Coringa – Delírio a Dois” é um filme estudo de caso de detalhe, cena e atuação. Do equilíbrio da força conflitante até a aceitação dessa personalidade mais dominante. É uma personagem que vive entre momentos de humanização-empatia e instantes que serve como “saco de pancada”. Por que o odeiam tanto? 

Quando os números musicais começam em “Coringa – Delírio a Dois”, poderíamos achar ridículo, mas não, são fascinantemente arrepiantes e dentro do contexto de cunho psiquiátrico (porque ali no refúgio de minha mente, ele se liberta). E sim, o público aguarda a sua catarse. Seu momento Tarantino. Que seu Joker, o palhaço do burlesco, sua “personalidade alternativa”, surte e salve a humanidade desses “imbecis sádicos” sensacionalistas com mais a presença da “bad influence” e com mais “risada idiota”. “Isso é entretenimento”, diz-se entre cenas de filmes musicais antigos. Outra fuga dele é no amor. É sentir que não está sozinho. É dividir sua fantasia com quem o venera. “Coringa – Delírio a Dois” também é o julgamento do “século”. Comoção externa dos fãs. Advogados, testemunhas e júri em tratamento de choque. Os “Santos” estão vindo. Sapateado. Não há limite. O longa-metragem é mais e mais delirante. 

Pois é, “Coringa – Delírio a Dois” é preciso até seu final. Que muda toda a linha. O que aconteceu? Será que foi o acontecimento na prisão. Cansaço? Desejo de morrer (já que no primeiro seu maior propósito era se matar)? Não revelarei nada, mas parece que Todd não tomou a melhor decisão ao redefinir rota. Só que mesmo assim a mensagem fica: libertem os loucos e prenda os normais. E sim, o amor tem dessas coisas: de se idealizar o outro. E para que um volte, o outro precisa ser exatamente como antes. Mudar é sinônimo de caretice. De perda de interesse. A solidão talvez seja a resposta para todo mundo. E para finalizar, Todd, de novo, decide seguir um caminho improvável, brincando com fogo. Preguiça? Ou genialidade conceitual? 

4 Nota do Crítico 5 1

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