Cora
Tempos desconhecidos de memórias dos outros
Por Vitor Velloso
Durante o Festival do Rio 2021
“Cora” é uma ficção com forma de documentário exibida no Festival do Rio 2021 que obteve alguma repercussão da crítica ao longo do ano. O filme de Gustavo Rosa de Moura e Matias Mariani parte de uma premissa particularmente interessante, a narração de memórias e arquivos de vídeo de uma personagem que está no futuro. Assim, para construir a sensação de distanciamento temporal, uma série de efeitos e artifícios são utilizados à exaustão nas imagens, como uma corrupção do documentário gravado pelo pai de nossa protagonista. O problema é que o recurso torna-se repetitivo com poucos minutos de projeção e o tom cíclico da obra transforma a experiência de redescobertas em uma arrastada passagem de bastão.
Dentro de sua temática, o conflito cultural torna-se uma mera questão não desenvolvida, a dinamarquesa fita as imagens à procura de respostas para as perguntas que seu pai um dia decidiu responder. São diversos problemas familiares que passam a ser debatidos, com depoimentos e entrevistas que vão construindo uma espécie de mosaico histórico dos desentendimentos dos personagens. Nessa pretensão, “Cora” articula as relações a partir dos traumas e tabus, como quem vasculha um passado distante para compreender os problemas do presente, levando em consideração o próprio cotidiano em contraposição com a fala mansa da narração. Mas é difícil se interessar pelo material apresentado, já que as mesmas histórias são contadas à exaustão, com perspectivas brevemente distintas e um tomo de dispositivos frágeis que revelam uma tentativa de conceituar as divergências temporais com as ligações dramáticas. Por exemplo, para cada vez que uma transição ocorre, vemos um efeito atravessar a tela e lembrar o espectador que o mesmo está diante de um arquivo.
Essas investidas reforçam algumas afirmações do futuro de seu universo, onde o Brasil tornou-se uma figura melancólica, distópica, de poucas esperanças. Se a tentativa era de compreender a realidade política nacional a partir dessas relações familiares, o projeto incorre na mesma questão que mantém nossa sociedade na rigorosa moral “democrática”. Ora, não chega nem a arranhar a superfície de uma possível discussão em torno do imbricamento. Mas caso a leitura esteja equivocada e a suspensão da proximidade, reforçada pelo distanciamento quase cético dessa narração estrangeira que analisa os julgamentos e opiniões dos familiares do passado, seja uma intencionalidade da estrutura narrativa, o filme torna-se ainda mais rasteiro. “Cora” é incapaz de encontrar o próprio conflito formal que o levou a desenvolver essa adaptação do romance “Antônio”, de Beatriz Bracher (mãe de Mariani). E nessa provável tentação experimental, onde o caos imagético é a intencionalidade do esvaziamento de afetos e sensações, a costura das dúvidas envolvendo Benjamin, Teo e Elenir são tão desinteressantes quanto suas possíveis respostas.
Em pouco menos de uma hora e meia, o longa consegue perder o espectador nessa confusão de recortes e cenas desconexas, com tantas arbitrariedades formais quanto poderia se imaginar de suas pretensões iniciais. Se nem mesmo as texturas passam batidas das inúmeras repetições e ciclos que fragilizam uma curta projeção, não seriam os personagens apresentados pela língua estrangeira que iriam romper o vício.
A sensação que fica de “Cora” é que suas inúmeras ambições são parte de um processo que nunca é traduzido para a tela, onde a montagem bagunça uma ficção que adapta um fatalismo familiar para os recortes interpretativos de um futuro melancólico particular da pequena burguesia. Nesse jogo de poucas certezas, Gustavo Rosa de Moura e Matias Mariani conseguem uma repercussão que explicita os fetiches de festivais em cumprir com experimentações imediatas, supostamente discutindo alguma particularidade nacional através dos recursos formais. Seria necessário mais que ciclos fechados da língua estrangeira para conseguir manter as coisas no eixo aqui.
Talvez Glauber tenha uma resposta para o fatalismo que acometeu o cinema nacional. “Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade absurda.” Não era exatamente o que ele planejava.