Continente
Questões de dívida
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2024
Existe uma certa ousadia de gênero e estética em “Continente”, dirigido por Davi Pretto, ao buscar referências cinematográficas para compor seu novo longa-metragem, especialmente nas formas de conectar suas temáticas, seja com cenas, coreografias ou mesmo dramas e relações entre os personagens.
Contudo, há um constante incômodo ao longo da obra que sugere uma colcha de retalhos menos elaborada que faz parecer em seu desenvolvimento. Circulando entre “Bacurau” (2019), “Desejo e Obsessão” (2001), “Corra!” (2017), “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969), o filme tenta encontrar em suas inspirações uma forma de se apresentar ao público enquanto projeto própria, com características próprias, mas acaba enfrentando alguns problemas similares de obras como “Propriedade” (2022), por situar toda sua base crítica em uma superfície moralista, com fragilidades tão basilares que agrupa as tentativas de elaboração para um exercício de gênero quase corriqueiro. De alguma forma é louvável a postura da obra em fixar seu ponto de interesse no horror, sem nenhum tipo de amarra comercial, porém quando as questões sociais de suas temáticas relacionadas ao fantástico e ao universo do terror se entrelaçam de forma indissociável, “Continente” não consegue se encontrar, soando tão genérico que torna-se cansativo.
Por exemplo, a estrutura basilar à la “Bacurau” partindo de um retorno, fixando seu ponto de representação em um lugar concreto e traçando os conflitos a partir do choque de realidade, até pode funcionar por determinado tempo, quase como parte das obras de Flanagan funcionam, com um objeto material funcionando como ponto basilar para toda a estrutura dramática. Contudo, quando avança utilizando a ritualística e todos os corolários mais simplórios para criar qualquer base mitológica, recai na superficialidade da obra de Kleber, que se desidrata na tentativa de uma crítica à terra, história e relações coloniais, consequentemente políticas, usando como referencial o moralismo clássico perpetrado pela grande mídia, sem fundamentação material da estrutura econômica, social, poder e religião. Não por acaso, as semelhanças com o filme de 2019, pois parte das virtudes e quase todas as deficiências são encontradas no mesmo tom. Assim como “Propriedade” se apresenta enquanto cartilha de revolução acadêmica, “Continente” procura sua identidade entre os termos de um gênero fortemente pautado pela temática social e seu ímpeto de funcionar enquanto exercício, mesmo que utilizando uma série de dispositivos questionáveis para alcançar isso. Desta forma, diversos segmentos são descartáveis na construção dramática do filme, com conflitos e diálogos frágeis que são intensificados negativamente por interpretações contraproducentes. Porém, não há culpa nos atores aqui, uma boa parte dos personagens funcionam apenas como vetores para movimentar a trama, sem uma articulação enquanto arquétipos, apenas dispositivos.
As exceções são Helô e Amanda, interpretadas por Ana Flavia Cavalcanti e Olívia Torres respectivamente, que possuem um tempo maior de tela, um desenvolvimento dramático menos superficial e uma dualidade entre as personagens que consegue movimentar alguma discussão ao longo da projeção, mesmo que utilizando-se de símbolos e ritualísticas já concebidas nos filmes usados como referência. E esse é um problema recorrente de “Continente”, se apropriar de segmentos de sua “filmografia” referencial, mesmo quando a paisagem política apresentada, ou mesmo o gênero cinematográfico, entrega ferramentas suficientes para não se escorar tanto em citações atravessadas.
Entre os revanchismos e a luta de classe, o filme não encontra sua identidade, nem mesmo enquanto diferença, e aposta todas suas fichas em uma segunda metade quase descaracterizada pela necessidade de homenagem, especialmente quando retoma cada uma delas com uma frequência quase grosseira. Assim, a base fantástica se desprende do campo material, tornando-se um mero artifício contextual, quase sintomático, do atual momento do cinema brasileiro. Apesar da coragem em trabalhar com um gênero tão estigmatizado, expondo relações sociais complexas entre os personagens, “Continente” não desenvolve quase nenhum tópico que cita e parece transitar entre as citações por uma certa conveniência formal, quase como ponto de apoio estético. Desta forma, mesmo quando consegue boas sequências de horror, apelando para o banho de sangue e a “barbaridade”, como citado no filme, não encontra exatamente seu objeto e procura nos simbolismos de suas referências alguma força para chamar de sua.