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Confissões Íntimas de uma Cortesã Chinesa

Vingança trágica

Por João Lanari Bo

Confissões Íntimas de uma Cortesã Chinesa

“Confissões Íntimas de uma Cortesã Chinesa”, dirigido pelo impagável Yuen Chor em 1972, é uma pérola desse mundo alucinado de fantasias de luzes e sombras – em outras palavras, do cinema produzido em Hong Kong. Uma produção diversa e híbrida, de dramas contemporâneos a comédias, passando pelo indissociável wuxia, ou seja: gênero de ficção chinês que combina artes marciais, cavalheirismo e fantasia, focado em heróis que alcançam habilidades extraordinárias de combate (de acordo com a IA).

Como situar essa experiência histórica conhecida como Hong Kong? Uma cidade que é, por um lado, herdeira do colonialismo britânico, conjunto de práticas cruéis e exploratórias, e, por outro, signo do dinamismo chinês contemporâneo. Depois de inacreditáveis 156 anos de domínio, os ingleses “devolveram” o território à China em 1997 sob o princípio de “um país, dois sistemas” (deliciosa expressão significando, em última análise, que quem manda é Pequim). Como a China é um colosso cuja escala desafia nossa pobre razão ocidental – desconfie, caro leitor, das sínteses apressadas sobre assuntos chineses, inclusive esta que segue – na virada do milênio Hong Kong tornou-se um polo financeiro de forte impacto não apenas na mainland China, mas também na enorme diáspora chinesa espalhada pelos países do sudeste asiático.

Afinal, o que tudo isso tem a ver com Yuen Chor e seu “Confissões Íntimas de uma Cortesã Chinesa”? Em 1948, quando a revolução comunista triunfou na China, ocorreu uma considerável fuga de capital e talentos de Xangai, inclusive de pessoal técnico da indústria cinematográfica. Os famosos Irmãos Shaw, casa produtora do filme em tela, dominava até o começo dos anos 80 a produção e uma cadeia local de cinemas, além de uma rede de TV, o que lhe garantia lucro em todas as etapas do ciclo de vida dos filmes. Reproduzir a China antiga por meio de proezas dos heróis masculinos, artes marciais e ilusionismo ótico em destaque, a fim de celebrar a nostalgia por uma China imperial, era uma das principais, senão a principal, feature dos poderosos Shaw. Nesse rio caudaloso de produções, Yuen Chor introduz uma dissonância.

Baseando-se em uma iconografia feminina – ou ainda, yin, em contraponto a yang – o filme exibe um ornamentalismo exuberante, pleno de significantes de beleza e romance, como flores, seda, névoa, luar, jardins e, sobretudo, rostos femininos. Tudo muito artificial, como reza a cartilha estética da produtora, mas com um diferencial: “Confissões Íntimas de uma Cortesã Chinesa” é um filme proto-feminista, uma crítica ao patriarcalismo fundada no amor lésbico da protagonista com a cafetina que a comprou de um infame traficante de mulheres. Não faltam fetiches sexuais e lutas espetaculares, onde, claro, quem se destaca é Ainu (Lily Ho, excelente) e sua protetora, Chun Yi (Betty Pei Ti, igualmente estupenda).

Os homens, com raríssimas exceções, são desprezíveis e abjetos: o chefe de polícia, Chi Te (Yueh Hua), é dos poucos que é contemplado com um olhar, digamos, afetuoso de Ainu. Em sua saga vingativa, ela que foi abduzida e estuprada na sequência por quatro estribados locais, nossa heroína é implacável. Toda essa ação parece desenrolar-se num mundo isolado e único: essa era uma característica de um estúdio com alta intensidade de produção como era o caso dos Irmãos Shaw, cenários teatrais interligados como se fossem um contínuo ficcional. Mas a habilidade de Yuen Chor subverte esse código, pela ênfase na plasticidade da imagem que indica uma espécie de autoconsciência da imagem – e introduzindo uma reflexão, ou inflexão, no wuxia.

“Confissões Íntimas de uma Cortesã Chinesa”foi o terceiro projeto de Chor Yuen na produtora – o roteiro escolhido, reservado para novos diretores do grupo, tinha sido descartado, ninguém se animou com essa mistura de exploração erótica, ficção policial e trama de vingança. O resultado reforçou uma variante dos filmes de espadachins, estrelados agora por mulheres super hábeis e assumidamente profanas, diante do ambiente predominante masculinizado. Não é à toa que o filme é constante objeto de textos críticos, inclusive acadêmicos, pelo seu caráter inovador e pela excelência da realização.

Na mesma época, no Japão, pelo menos dois filmes se equiparam a essa temática, vingança feminina: “Lady Snowblood – Vingança na Neve”, de 1973, e “Sexo e Fúria”, do mesmo ano. No século 21, histórias de mulheres que planejam e executam vinganças elaboradas por traição, bullying ou injustiças firmou-se como tema popular. O cinema de Hong Kong, esse enclave testemunha do colonialismo secular, foi o pioneiro.

5 Nota do Crítico 5 1

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