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Cloud – Nuvem de Vingança

Sold Out

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2024

Cloud – Nuvem de Vingança

Cloud – Nuvem de Vingança”, um dos três longas que Kiyoshi Kurosawa completou em 2024, é um filme a um só tempo banal e surpreendente. Como combinar essas percepções tão antagônicas? Dividir a narrativa em dois segmentos é a primeira opção. A primeira parte trata dessa comunicação digital que invadiu o cotidiano social, o comércio eletrônico: vendas ou revendas de produtos online, falsificados ou não, com preços arbitrariamente fixados como se fossem oportunidades imperdíveis. A segunda irrompe quando essas “vendas” passam a configurar pequenos crimes e atingem uma massa crítica, transbordando em uma animosidade que se materializa no mundo real com a violência letal de um linchamento.

Ao fim e ao cabo, é um filme de ação, gênero que Kurosawa trafegou com desenvoltura em inúmeras produções, mais ou menos fantasmagóricas, mais ou menos explícitas. Os personagens de Kurosawa Kiyoshi, sobretudo a partir do estupendo “Cure”, de 1997, parecem pertencer a um mundo de solitários em busca de alteridades. Inseridos nas estações de trabalho ou no ambiente caseiro, esbarram com fantasmas e duplos, tangíveis e intangíveis. Entram em contato com os “outros” e se transformam. Yoshii Ryosuke (Masaki Suda) entra nessa galeria como um revendedor virtual que acumula os mais variados produtos — equipamentos médicos, bolsas, bonecas — para inflar os preços e revendê-los a qualquer um que viaja pela internet em busca de lucro fácil.

Ryosuke é, sobretudo, um personagem opaco, nada do que ele faz ou deseja em “Cloud – Nuvem de Vingança” tem alguma relevância. Tudo é meio indiferente e previsível, do afeto com a namorada ao dinheiro, que junta para alugar uma casa maior, nos arredores de Tóquio, em frente a um lago. Ele carrega uma espécie de ausência que faz com que tudo à sua volta fique impregnado de banalidade. Mostra alguma cautela, mas não hesita em arriscar em comprar bugigangas duvidosas, e deleitar-se com as vendas online que assiste na tela do seu computador. Sold out é a senha para a breve satisfação que exibe ao constatar o giro comercial de seu estoque, átimo de prazer substanciado pela internet.

Para Kurosawa, em primeiro lugar vem o “gênero”, no caso, o “filme de ação” – o “cinema de gênero” é mais fácil para a audiência entender, e a partir dele os temas aparecem e se desdobram. O elemento ficcional é sempre necessário para contar a história, mas o cinema é também o meio de captar a realidade circundante, no ato mesmo de filmar. Você começa com o gênero, que é ficção, e gradualmente se move em direção à realidade, assinalou, no meio do caminho, em algum lugar, descobre o filme. Essa premissa, que o cineasta repetiu por diversas vezes, funciona desde que começou a dirigir intensamente no “V-Cinema” dos anos 80 e 90, filmes distribuídos diretamente em vídeo, exercitando sua técnica de mise-en-scène.

No mundo contemporâneo da vertigem digital, em particular na vertente comercial que não cessa de se expandir, pequenas crueldades e queixas penosas podem – ou poderiam – evoluir para pulsões assassinas. Quando morava em Tóquio, Ryosuke encontrou certa manhã um rato morto na porta de casa, e caiu da lambreta na noite seguinte por conta de um fio invisível armado na rua. Seu anonimato virtual ficou ameaçado, a legião de pessoas que se irritou com suas vigarices está chegando perto. Além de mudar-se para fora da cidade, junto com a namorada Akiko (Kotone Furukawa), contrata um novo assistente, Sano (Daiken Okudaira), um garoto simplório e bem apessoado, consciente de suas limitações intelectuais – mas que não vacila quando se trata de fazer o dirty job.

É quando “Cloud – Nuvem de Vingança” vira a chave e escala a pancadaria. Os muitos compradores humilhados e ofendidos se unem, alguém descobre nos porões da internet o novo endereço e a barra pesa para o incauto revendedor. A frustação e o desejo de vingança se consolidam de alguma forma na nuvem de dados que paira sobre a cabeça de Ryosuke. Segue-se um tiroteio desvairado em um cenário óbvio de armazém que poderia ser usado em algum videogame de tiros e perseguições, um tiroteio multijogador. Entre tubulações que desabam, tijolos que se esfarelam, Ryosuke foge desesperado, mostrando finalmente uma emoção genuína – medo.

Mas, afinal de contas, o que separa o modesto revendedor de suas vítimas? Talvez, simplesmente, que eles ocupam posições diferentes no espectro da incontornável vida digital que nos assola. Não é pouca coisa.

4 Nota do Crítico 5 1

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