Cidadefantasma
Destino manifesto-formal pro Oeste
Por Vitor Velloso
Durante o Festival Ecrã 2020
“Cidadefantasma” de Jon Cates, até o momento, é o filme mais interessante no Festival Ecrã deste ano, com sua virtualidade obrigatória por conta da pandemia. É o mais consciente de seu material de fato, não porque concebe sua forma como elegia de discurso, pois é inerente à linguagem, mas porque compreende essa forma a partir de uma problemática de temporalidade diante da materialidade, aqui com duas frentes, uma de ordem econômica, política e sociológica, outra a partir da própria linguagem cinematográfica.
Cates entrega uma espécie de revisão crítica do discurso do Western, aqui direcionado enquanto material de arquivo e construção de sobreposição. A criação ganha um novo tom a partir da frente proposta pelo diretor, essa criação vem de uma materialidade própria daquilo que é discutido, sem ambientar essa virtualidade de “colagem” a partir de um ciclo de compreensão do próprio pensamento. Vemos a dialética se materializar na realidade e na sobreposição, um embate que se dá a partir de uma desconstrução do “real”, onde a exposição da filmagem se torna inevitável (os personagens e a tela verde), e a filmagem de uma paisagem, aqui dada como um território político-cultural, onde a História é erguida como patrimônio do capitalismo, fundado em cima de “ossos e sangue” dos nativos.
E essa concepção de Cates é bastante consciente das limitações de representação, não à toa, os personagens se materializam como entidades de dois povos, não dialéticos, opostos. Onde a História nos mostra que o etnocídio funda o capitalismo norte-americano, a exploração segue seu curso, não-natural, e se dá ao exterminar o povo nativo. O povo branco e seu manifesto dogmático religioso-etnocida, é dado a partir dessa criação do diretor, onde é necessário dar imagem ao que deveria ser consenso, público. É claro que didatismo não faz parte desse processo de embate que o diretor promove, mas o mesmo se consolida nesse entrave de retomada histórica, proposta propriamente burguesa, onde deve ser feito uma revisão dessa construção social dada pela classe dominante. E aqui, “Cidadefantasma” se compreende como invasora dessa realidade, projeção de uma história que se dá através de uma tridimensionalidade incapaz no cinema, ao menos pelas suas mortes, então, é necessário que haja materialização das mortes, sem a vulgarização do extermínio. As caveiras que que surgem como centralizadoras de imagem, de um progresso “ao oeste”, vêm como síntese dessa reverberação de sangue e riquezas roubadas.
Não se compreende essa realidade em quatro cantos de tela, apenas em uma espacialidade nunca filmada, as quatro montanhas presentes na fala da nativa, Diné, pelo território norte-americano. Exatamente por esta questão, a resolução não se torna uma alternativa, ela é um entrave dessa forma, um limite, um imbróglio que se dá a partir dessa representação anteriormente citada. Aqui, Cates não se propõe ao exercício burguês de repensar “Cidadefantasma” como um processo histórico, muito menos formal, é uma experimentação factualmente pautada na materialidade daquilo que filme, concebe, edita, deforma. E aqui, não cabe trabalharmos uma espécie de consciência acima da matéria, pelo contrário, o filme determina seu reverb(e) até onde sua representação pode ser dada, ou seja, a partir dessa criação.
E a pauta é bastante ampla e complexa, pois não se trata de concepção naturalista, humanista, política reducionista, parte de uma inequívoca compreensão da realidade através desses vácuos assassinos da história capitalista e do culto ao progresso. Tentar relacionar essa truculência com a proposta de “desenvolvimento” dada aqui no Brasil, poderia ser um exercício pouco pragmático para uma crítica, mas não inconcebível em indicações. Darcy Ribeiro transporta, ou melhor, aproxima, parte da realidade do sul dos EUA, ao Brasil, em “Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos”.
É dessa herança de criação contemporânea de uma historicidade, da política, da sociedade, onde o cinema possui forte influência nessa modulação, que Cates vai se utilizar para tentar desconstruir um imaginário dado pela maioria vigente na situação político-econômica, ou seja, a indústria, os detentores do capital intelectual e econômico nos EUA.
Está claro que a mensagem é dada através da experimentação e mira mais que apenas o povo norte-americano, mas os brancos do mundo inteiro, porém onde “La Verdade Interior” encontra uma linguagem limítrofe desse processo, pois não compreende sua materialidade, “Cidadefantasma” é consciente das limitações através do mesmo imbróglio, mas sem inverter a equação, pois é no mínimo, estar em conluio direto com uma contra revolução.