Cidade Correria
Em cada corre
Por Vitor Velloso
Mostra de Cinema de Gostoso 2021
“Cidade Correria” de Juliana Vicente é uma obra que se move com o trânsito de seus personagens, acompanhando o caos urbano, a mobilidade, a violência, o preconceito e o sorriso do subdesenvolvido que se encontra nos espaços, ou não. Documentário, manifesto, registro, as categorizações podem ir se acumulando para enquadrar o filme em algum tom cinematográfico mais particular. Contudo, o longa não se direciona às limitações corriqueiras e constrói um paideuma de relatos e registros que transforma o projeto em algo que apenas encontra seu lugar, como seus personagens.
Os primeiros minutos podem desanimar, a abertura é uma performance pouco convincente que não possui grande impacto, apesar dos esforços formais de aproximar a interpretação com uma montagem quase geográfica. Passado o susto inicial, “Cidade Correria” assume a perspectiva de nos levar ao trabalho de um projeto formado por jovens periféricos. Na dinâmica, desde filmagens de apresentações, entrevistas, relatos e desabafos, o espectador passa a se integrar no processo. Não à toa, a primeira metade surge cansativa, arrastada e parece desarticulada, com fragmentos que não se encontram. Com o encaminhamento da projeção, tudo vai ganhando corpo e os trechos se tornam mais sólidos.
O escopo de manifesto vai sendo abandonado, dando espaço para um documentário que rende sua voz aos próprios personagens, confundindo-os na tela: encenação e depoimento. O palco se funde à realidade e vice-versa. Como disse alguém, em algum lugar: “Nos trópicos, faz calor pra cassete”. A compreensão do subdesenvolvimento como estado, dá a potência de transformar o corpo brasileiro, negro, periférico em uma urgência para ocupar os espaços que lhe é negado. Marcelo Magano, um dos personagens presentes em “Cidade Correria” ajudou a realização de “Cuidado com Neguim” performance (que estive presente em sua fase inicial) rendendo alguns encontros marcantes nos últimos anos.
O documentário se compromete em compreender o movimento interno de suas apresentações como uma extensão da vida de seus integrantes em militância e entrega, debate e expurgo. Uma dialética assimétrica que é toró de miolo pra burguesia da Zona Sul carioca. Os corpos se encontram em espaços múltiplos, mas problemas semelhantes. E a prisão, também chamada de mobilidade urbana, carioca vai se amontoando em expressões de liberdade diante da conjuntura que oprime. Neste campo, o filme acaba patinando em como estruturar uma proposta que consiga assumir as principais características do seu grupo protagonista, acaba replicando algumas de suas confusões internas e dúvidas. Alguns deslizes custam caro e o ritmo acaba oscilando muito para pouco tempo de duração.
Entre improvisos e relatos, o filme vai somando uma complexidade de particularidades entre suas notas interpretativas e uma realidade genocida e opressora. Aqui, a falta de material de arquivo é um dos trunfos para que a manipulação da montagem seja totalizante e consiga construir a partir do processo criativo dos personagens e entrevistas que são atravessadas de maneira recíproca. De mesma forma, “Cidade Correria” soa um processo contínuo, que tateia seus personagens e histórias atrás de uma película que é construída de forma conjunta.
“Cidade Correria” é cativante até certo ponto, cansativo em outros, mas é consciente de limitações na produção e faz disso parte do motor criativo, assume uma perspectiva que é, no mínimo, corajosa. Juliana Vicente realiza um misto de guerrilha, manifesto, documentário, registro que por alguns excessos não vai mais longe, mas sem dúvida acaba puxando alguns espectadores para um lugar distinto da sala de exibição e dos limites do cinema. Tanto nos relatos, quanto na montagem que é versátil em cadenciar os diferentes momentos. Ainda que essa divergência acabe prejudicando a unidade.
De qualquer maneira, devemos sempre lembrar do impacto que tal obra possui em locais diversos, desde o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul a Mostra de Cinema de Gostoso, vemos que a pluralidade do projeto contagiou os olhos de curadores pelo Brasil, esperamos que isso vire moda, para não termos que assistir mais reflexões de apartamento de como é difícil existir. Correria é outra coisa.
Assista ao filme de 10 a 14 de março na Mostra de Cinema de Gostoso 2021, clicando no link: https://innsaei.tv/#/