Cidade; Campo
Representatividades sensoriais em fábulas realistas
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival de Berlim 2024
Os contrastes dos espaços urbanos versus os rurais e das possibilidades múltiplas de oportunidades versus a vida simples e limitada, ao expandir o conhecimento, são mote e crítica para desenvolver a trama do mais recente longa-metragem da cineasta brasileira Juliana Rojas. Exibido na Mostra Encounters do Festival de Berlim 2024 (e vencendo o prêmio de Melhor Direção – e Melhor Filme Queer no Indie Lisboa), “Cidade; Campo” pode ser categorizado como um filme de episódios corais (por não haver conexão entre si – apenas por um detalhe, que não se pode contar aqui para não estragar a surpresa da reviravolta). A narrativa é dividida em duas histórias-esquetes: uma na cidade grande (em são Paulo, terra natal da diretora) e a outra no interior (no Mato Grosso do Sul).
Em “Cidade; Campo”, Juliana Rojas corrobora sua forma de criação: a de realizar um cinema de mise-en-scène, que existe na representação da representatividade, que busca trazer e discutir temas sociais. Dessa vez, o foco é a questão do acidente de uma barragem. Todo o cenário pensado aqui, em estruturas de cidades fantasmas (e quem está ali “virou fantasma também”), busca o atravessamento extracampo imagético do próprio cenário, para assim construir uma atmosfera de ambiência sensorial (à moda de um David Lynch quando encontra George Romero), de vívido sonho premonitório, de presença invisível, de perigo iminente, de algo intangível que pode vir e mudar tudo numa fração de segundos, como os artifícios cênicos da rua íngreme, da chuva, do garoto que não fala, cavalos, cachorros, charutos, alecrim, cachimbo, tudo é inserido para potenciar a sensação de estranheza integrada e retro-alimentada do exato instante em que suas personagens seguem suas vidas.
Na primeira parte-esquete de “Cidade; Campo”, a narrativa conduz seu público pelo coloquialismo naturalista ao desenvolver seus diálogos que se alternam entre a exposição passiva e surreal das ações do mundo moderno e a interferência da crítica social. “Tem gente que fica feliz limpando vidro?”, uma personagem cutuca a outra, para logo depois ser apresentado o “aplicativo das diaristas” (“Você é sua própria empreendedora; você é do tamanho do seu sonho”, cujas frases vendidas contrastam o estágio da limpeza de um piano e a comida em uma Tupperware, por exemplo). Na existência desses seres em sobrevivências não há lugar para sensibilidades, e cada vez se comportam mais como pragmáticos. Toda essa defesa desencadeia e aumenta a perspicácia, a sagacidade, a necessidade de se proteger o tempo todo, acessando inclusive tóxicos e hostis refúgios contra a “dominação” de destrutivos tratamentos sociais das relações humanas.
“Cidade; Campo” desenvolve sua narrativa pela fábula do realismo fantástico, de significados próprios, em que todo universo paralelo se torna possível, de duplos viajantes em fendas do tempo. “Será que eles olham para gente?”, pergunta-se. Uma personagem easygoing vê pessoas através do espelho, depois ouve vozes. Uma falha na Matrix? Aqui, essa filosofia existencialista de traduzir propósitos dos indivíduos é o mote para abordar a metáfora da invisibilidade da classe social menos favorecida e trabalhadora versus a rotina dos vizinhos. Juliana Rojas também se permite transcender o próprio elemento surreal já presente no filme, usando teatro metafísico e números musicais, a fim de desconectar a realidade pela fantasia, como se fosse um sintoma catártico de uma loucura massificada.
Na segunda parte, o campo representa a mudança. Uma casa herdada. O recomeço após a consequência de uma morte, que gera a necessidade da organização: limpeza e “roupas para doação”. Agora, a narrativa de “Cidade; Campo” é de naturalismo articulado, mais orgânico e mais palpável, que sobe o nível dos acontecimentos com mais coisas estranhas, permanecendo a sensação de sonho acordado. E ou a contradição de uma “veterinária com medo de morcego”. Aqui, a vida é mais abstrata, “mexendo” sua personagem por conta de uma sensação de “mundos em simetria”, de reconexão pelo “poder dos vegetais”.
Sim, essas personagens refazem uma nova estrutura social, pautada na energia e respeito à natureza (de “libertar os animais”), e de ressignificação da união afetiva, pelo feminismo não binário (“alerta de sapata”, diz-se, entre cenas explícitas de sexo lésbico, que inclusive não deseja de jeito nenhum esconder as estrias dos “corpes”). Apresenta-se então praticamente um novo filme, de humor diferente, que investe mais na iminência do medo psicológico, evocando os seres ancestrais. “Cidade; Campo” torna-se uma experiência transcendental e psicodélico, ora por simular em tela os efeitos alucinógenos da Ayahuasca, ora por sinalizar uma possessão pelas “ordens” missionários para salvar o mundo. Quanto mais assistimos a segunda parte, mais adentramos na estrutura de um discurso mais panfletário e mais afobado em impor argumentos das lutas políticas.
Sim, não há nada de errada de propagandear as ideias, usando o cinema como veículo, mas ao potencializar a palavra ao invés da sutileza da forma narrativa, num caminho mais direto, mais gritado e mais forçado para chegar à razão, fica apenas a literalidade da criação. Sim, “Cidade; Campo” é altamente potente; obrigatório; necessário ao cinema e a nossa sociedade; e apresenta uma excelência tão grande para ser reduzido apenas simples verborragia do vernáculo social. Ainda que com essas rachaduras, “Cidade; Campo” corrobora a maestria de Juliana Rojas em criar um universo único de gênero do horror social, em que os monstros estão mascarados entre nós. “Cidade; Campo” venceu também o prêmio da crítica e Melhor Atriz (para Fernanda Vianna) do Festival de Cinema de Gramado 2024.