Flâneur Latino-Americano
Por Jorge Cruz
A cena inicial de “Chicuarotes“, em que Cagalera (Benny Emmanuel) e Moloteco (Gabriel Carbajal) vestidos de palhaços à princípio fazem um pequeno show e pedem dinheiro no ônibus, contém uma quebra de expectativa. Essa abordagem se transforma em um assalto, como se a juventude em crise dissesse: se não conseguir algo por bem, conseguirei por mal.
Em seguida a representação do urbano como marca da direção de Gael García Benal emerge quando a câmera abre e podemos acompanhar os lindos grafites da Cidade do México. Essa relação com a cidade é fundamental para entender a dinâmica do filme. O termo chicuarotes significa não só um ato de teimosia ou uma pessoa muito teimosa. Também seria o apelido dos moradores do bairro São Gregório Atlapulco que fica na província de Xochimilco na Cidade do México, onde se passa a história. Essa região é cheia de tradições, porém encontra-se em estado de decadência e com suas relações sociais estremecidas.
Essa representação de jovens sem perspectiva, ambientada em um país sul-americano em crise, não é nenhuma novidade. O cinema argentino nos deu grandes obras ainda no final dos anos 1990, dentre elas, “Pizza, Cerveja, Cigarro” (Israel Adrián Caetano e Bruno Stagnaro, 1998) que ganhou destaque ao vencer o Festival de Gramado quando este passou a ser ibero-americano face à crise na produção nacional. Uma criação de personagem que foge da unidimensionalidade típica de sociedades que já resolveram suas questões, que possuem relações de poder mais saudáveis – se é que isso é possível. A América Latina pulsa por uma infinidade de debates que não permitem representações estereotipadas, farsescas e insólitas. Até mesmo as figuras extraordinárias de Guillermo del Toro só funcionam porque interagem com pessoas carregadas de humanidade.
“Chicuarotes” foge da tática contemplativa da juventude em derrocada, expediente comum ao cinema com essa pegada desde que “Sem Destino” (Dennis Hopper, 1969) rendeu frutos. Há aqui uma gama de personagens que denotam uma certa comédia em meio à tragédia e vice-versa. Mérito do roteiro de Augusto Mendoza, que entrega ótimo material para o segundo trabalho de direção de Benal, assim como fez com “Abel“, longa-metragem que marcou a estreia de Diego Luna na direção, de 2010. Tanto Benal quanto Luna não terão dificuldades na transição ou acumulação das carreiras de atuação e direção. Acostumados à rotina de trabalhos com alguns dos novos mestres do cinema, eles estão inseridos em uma casta já vista como privilegiada do atual cenário. Mesmo assim, identificar que a resposta a essa missão é positiva não perde força à luz desses argumentos.
O ator Benny Emmanuel, muito popular no México, alia sua boa interpretação a um carisma que lhe credencia a defender o protagonista com propriedade. Mesmo com a parceria inoxidável de Moloteco, seu Cagalera é o centro das atenções. É a mais complexa de todas as figuras. Ao mesmo tempo em que é mostrado de início como uma pessoa que dá golpes, um assaltante de ônibus, aos poucos outras faces desse personagem vão se revelando. Ele é filho querido, defensor dos amigos, garoto indefeso e namorado apaixonado e misógino tal qual um jovem que reproduz as práticas de onde está inserido. Não percebe que sua namorada Sugehili (Leidi Gutiérrez) parece condenada a ter o mesmo destino da mãe, que ele tanto quer proteger.
Tudo isso é resultado da falta de perspectiva. Adicione um ambiente de constante violência doméstica da porta para dentro de casa e um cenário de guerra urbana da porta para fora e não é difícil identificar as similaridades do México de “Chicuarotes” com o Brasil das capitais. Porém, o mais próximo de figura que protagonista se aproxima é a do flâneur, conceituado por Walter Benjamin. A direção de Benal assume também essa figura e apresenta uma câmera sempre caminhando ao lado do protagonista, querendo mostrar a história pelo seu entendimento.
Tal como um flâneur latino americano, suas motivações e objetivos destoam um pouco da construção benjaminiana. Essa toada só deixa de existir no clímax dramático, em que a expectativa pela tragédia e a ação direta do destino leva o espectador por outro caminho. Nessa parte a forma se aproxima mais do cinema mexicano, que apresenta as ruas como um tribunal. Esse conjunto de atributos, se não tornam “Chicuarotes” um grande filme, torna-o fundamental para entender a complexidade de uma sociedade muito semelhante à nossa, em uma realidade que torna quase impossível a manutenção de coerência em nossos atos.