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Cenas de um Casamento

A emoção é sempre brutal

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2021

Cenas de um Casamento

Cenas de um Casamento”, minissérie em seis episódios dirigida pelo israelense Hagai Levi concluída em 2021, é um exercício a um tempo penoso e gratificante – desde a produção, performance dos atores, até a imersão do espectador. Altos e baixos de uma relação de dez anos, conflitos e reconciliações, desgaste nervoso e tortura psicológica – não é tarefa fácil acompanhar essas tensões e distensões, enunciadas de forma intensa e arrebatadora pelos protagonistas, Jessica Chastain (Mira) e Oscar Isaac (Jonathan). Dentre os rewards depois da travessia do deserto está sem dúvida a entrega visceral da dupla – no sentido etimológico do termo, de ou pertencente à “viscera”, termo em latim que se refere aos órgãos internos do corpo, como entranhas e carnes.

Tudo começou sete ou oito anos antes da produção, quando Daniel Bergman, filho do lendário Ingmar, procurou Hagai Levi para propor o remake do famoso título homônimo que o sueco realizou em 1973, transmitido em episódios na TV e posteriormente montado em um longa de quase três horas, para circulação global. Consta que, após a exibição na TV sueca, ocorreu um surto na taxa de divórcios no país – verdade ou não, a hipótese revela uma recepção acalorada no imaginário da audiência. Não se sabe se a minissérie da HBO tenha provocado efeito similar, mas é provável que muitos tenham abandonado o programa no segundo episódio, que leva o singelo título de “Poli” – ou então simplesmente tenha prevalecido um acompanhamento fast-forward, pulando e/ou adiantando as cenas desse casamento turbulento.

Cada episódio de “Cenas de um Casamento” mergulha em um momento emocionalmente forte do casal, completando, do início ao fim da minissérie, cinco anos de vida em comum. Filmado em sua maioria em apenas uma locação, a casa em Boston da família, a quase totalidade dos diálogos concentra-se na interação entre Mira e Jonathan, que se conheceram na universidade, se aproximaram alguns anos depois e viveram dez anos juntos, com uma filha, Ava. Logo no primeiro episódio, “Inocência e Pânico”, o casal se submete a uma pesquisa “psicológica” sobre casais estáveis – e o que transparece é o contrário, o casamento baseia-se em premissas instáveis. Isso não é culpa de ninguém, argumenta Mira em outra ocasião, é simplesmente como as coisas são.

Essa primeira sinalização de descompasso na relação parece superficial e superável, sobretudo do ponto de vista de Jonathan, judeu de família ortodoxa e fruto de uma educação restritiva – apesar de racionalizar sempre que possível esse background, ele que é professor de filosofia. Mira, por sua vez, estudou para ser atriz, tomou drogas e viajou – para ceder enfim seu lado criativo à ambição, tornando-se uma bem-paga executiva de vendas em uma empresa de tecnologia. Ela pode ser dura e combativa, qualidades que ajudam na sua carreira profissional – mas que desequilibram inevitavelmente a relação. É ela quem viaja o tempo todo a negócios, e paga a maioria das contas, e Jonathan quem fica em casa e cuida de Ava.

Quando Mira retorna de uma viagem de negócios com uma revelação devastadora, ela e Jonathan lutam para processar o complicado abalo – esta é a sinopse do segundo episódio de “Cenas de um Casamento”, autoexplicativo. O legado psicológico da formação familiar de Jonathan vem à tona exacerbado pela decisão abrupta dela, a densidade dos diálogos e situações adquire uma aura de carne viva, exposição desenfreada de sentimentos, frustrações, perplexidades, ciúmes e dores. Uma DR, como se diz, em alta voltagem, gerando um desconforto pela proximidade psíquica das descargas emotivas dos personagens.

Mira, enfim, sugere que ela e Jonathan não conseguem ficar no mesmo ambiente sem se machucarem, levou uma eternidade para um deles admitir. Essa procura quase sempre desesperada por um conhecimento mútuo que possa, de alguma forma, prover um horizonte factível para o casamento, evolve e revolve na narrativa. A emoção é sempre brutal, o sexo pode ser animalesco, e o afeto, uma violência.

Hagai Levi realizou adaptações da série bergmaniana, mas no geral manteve o desconforto do original. Duas soluções se destacam na sua versão: a eliminação da quarta parede, obtida a partir de um trabalho meticuloso de câmera e edição, que gera uma fluidez cativante nas cenas; e a introdução, em cada episódio, de curtas sequências acompanhando a chegada dos atores nos bastidores da produção, recurso de linguagem para indicar um breve distanciamento narrativo.

Essas breves sequências, rodadas no início da pandemia, tornaram-se um registro histórico daquele período – toda a equipe portando máscaras, exceto a dupla principal. A estes, cabe a máscara dramática, exercida com competência ímpar por Jessica Chastain e Oscar Isaac.

4 Nota do Crítico 5 1

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