Celluloid Underground
Horizonte
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2024
Funcionando entre o debate político e a vulcânica cinefilia, “Celluloid Underground”, dirigido por Ehsan Khoshbakht, é um retrato íntimo da paixão efervescente por esse tal de cinema. O documentário procura contar uma parte da história do encontro entre Ehsan (cinéfilo e diretor) e, Ahmad Jurghanian (cinéfilo e colecionador de filmes), sua paixão pelo cinema e como Ahmad ajudou a salvar inúmeras películas do regime iraniano, especialmente a partir de 1979. O tópico da Revolução de 1979 é pouco trabalhado em suas particularidades, sendo mais um pano de fundo para explicar ao espectador a importância de Ahmad e de como Ehsan era uma figura marginal da cinefilia iraniana. Contudo, apesar de ser citada com frequência, a Revolução não possui um desenvolvimento na obra, sem informar quais as motivações diretas da censura, das torturas e da violência desenfreada que o país sofria.
Por essa razão, “Celluloid Underground” se constrói não como um retrato político propriamente dito, nem mesmo apenas sobre cinefilia, mas também compreendendo um aspecto importante dessas imagens em movimento como memória, que a Revolução baniu. De alguma forma, a montagem procura criar uma sensação de cerco, onde todas essas possibilidades de imaginação, de representação do mundo, do cinema em si, e consequentemente, da memória, vão se fechando por conta dos acontecimentos no país. Não por acaso, o documentário inicia um projeto de contextualização, utilizando recursos dramáticos para encenar aspectos da narração e das sensações que a cinefilia despertou no cineasta, dentre eles uma série de cenas de filmes, mas vai encerrando seu espectro de debate para um cenário que se tornará cada vez mais frequente para o espectador, a casa de Ahmad. Esse ambiente, território profundamente disruptivo dentro do contexto iraniano, não é apenas o paraíso do cinéfilo, como também uma consciência de preservação cultural, sobretudo das pessoas ali envolvidas. E é justamente essa ideia que guia boa parte do longa: a projeção enquanto forma de “reviver” os mortos, um encontro com pessoas que já partiram, memórias que ficaram no passado, onde essas imagens retornam. Desta forma, uma das últimas falas do documentário é “Vejo você na tela”, pois Ahmad faleceu e sua coleção de filmes, memórias e pessoas, está com o paradeiro desconhecido.
Na maior parte de “Celluloid Underground” o espectador pode reconhecer essa cinefilia em suas próprias lembranças ou de semelhanças com sua vivência e essa talvez seja uma das maiores magias que o projeto consegue suscitar, transformar sentimentos particulares em universais. Contudo, o longa não consegue conectar todas as temáticas que levanta, pois parece ter um apego a determinadas imagens e situações, justamente por ser sua grande paixão. De alguma forma, o conteúdo político por trás de toda essa história projetada na tela, nunca consegue ter uma dimensão que não seja íntima, o que não necessariamente pode se apresentar como um problema para alguns, porém sem dúvida é um elemento que o diretor flerta frequentemente e não desenvolve. Esse elemento é definitivo para a experiência, pois dita a própria estrutura do filme, consequentemente dos acontecimentos da vida real, e vice-versa.
Na mesma medida que esse é o elemento que torna “Celluloid Underground” fascinante de alguma forma, por centralizar seus registros e materiais de arquivo em filmes e nesse encontro frequente com Ahmad, formando um casulo de memórias que dita a obra do início ao fim. Essa postura tem seus méritos, especialmente pela inevitabilidade do tempo e a impossibilidade de salvar todo aquele patrimônio, mas enfraquece a estrutura de uma obra que é tão apaixonada/obcecada por algo, que parece ignorar seu entorno.
Sem dúvida, é de uma beleza ímpar a homenagem aqui realizada e materializada, pois não há precedentes do esforço que o protagonista fez para manter essa história viva, mesmo que com imagens de outros, e Ehsan possui um carinho tão profundo por essa atitude e essa pessoa que decidiu apoiar seu longa em um encontro, no feito deste homem e na materialidade de uma projeção que parece tão distante a ponto da memória se confundir com o presente, pois o fim da representação é a realidade em si mesma, ou vice-versa.