Cartas para Paul Morrissey
Homenagem Apaixonada
Por Jorge Cruz
Mostra de São Paulo 2019
“Cartas para Paul Morrissey”, todo filmado em 16mm ao longo de quatro anos de produção, nos permite materializar as consequências do cinema vanguardista dos anos 1960 liderado por Andy Warhol. Usando um semi-experimentalismo, o diretor e roteirista Armand Rovira conta a história de cinco cidadãos do mundo, cada um com suas particularidades – não necessariamente pautadas pelo território onde se situam. Em narrativa episódica, as tramas se conectam apenas pela premissa de serem encenações de cartas escritas a Paul Morrissey, importante colaborador nos projetos de Warhol.
O grande nome da pop art já tinha lançado algumas obras audiovisuais antes de concretizar sua parceria com Morrissey. Porém, essa conexão entre eles foi fundamental para que as produções que se sucederam fossem mais acessíveis ao espectador-médio, permitindo um ganho de popularidade de Andy, o que capitalizou sua figura. Estruturando de forma mais convencional o produto final, observou-se uma aproximação de Warhol ao mainstream, passo fundamental para a consolidação do movimento artístico por ele liderado.
Partindo das características comuns dos personagens dos filmes da dupla Warhol-Morrissey, como a excentricidade e a degradação, Rovira inicia o longa-metragem com a história de Udo (Xavi Sáez), um homem que decide sair de Berlim em direção a Madrid. Acreditando que a sociedade está o matando, o foco do debate proposto nesse trecho gira em torno da ambição desmedida das pessoas. A consequência diretamente sentida pelo protagonista, assim como se observa em boa parte da população, é o aumento de sua ansiedade. Em arco narrativo mais longo em comparação com as outras partes de “Cartas para Paul Morrissey”, o confronto de Udo com a sua fé e a escalada de fundamentalismo perdem um pouco do impacto pelo ritmo escolhido ser bem mais contemplativo do que as outras cartas, bem superiores. Mesmo que os enquadramentos mais inspirados ocorram justamente aqui, como uma gota de chuva escorrendo na janela e seu reflexo servindo de lágrimas de uma personagem, até as alegorias imagéticas relacionadas à religião. Talvez os realizadores optem por dar ao público um tempo para afinar sua vista à estética da obra, trocando o deslumbre por certa cadência.
A segunda carta é bastante curta, mas responsável por trazer a voz de Joe Dallesandro, ator das principais obras de Paul Morrissey, em uma abordagem simples sobre regiões das grandes cidades reservadas ao consumo de drogas ilícitas. Joe protagoniza aquela que talvez seja a obra-prima do homenageado, “Heat”, de 1972 (apontado por alguns como um dos precursores do New Queer Cinema a se disseminar na década seguinte), em que há uma releitura do clássico absoluto de Hollywood, “Crepúsculo dos Deuses”. É justamente nessa conexão de obras que a surge a terceira parte, onde Olena (María Fajula) é uma hipotética atriz do auge criativo de Morrissey, mencionando especificamente o filme “Chelsea Girls”, de 1966. Nesse ponto, o longa-metragem se permite ser um pouco mais expositivo, didático ao trazer uma breve contextualização. É fundamental que a montagem da obra nos coloque nesse ponto no meio de sua projeção, momento em que já estamos à vontade com as investidas experimentais de Rovira e ainda muito curiosos com as abordagens possíveis. Essa maneira de se recriar o ocaso de uma estrela de cinema é o máximo de palatividade permitida. Apesar de não ser a história mais forte, acaba levando a uma construção mais eficiente por conta dessa estrutura mais convencional, expediente que o homenageado utiliza, como já mencionamos.
Já o trecho estrelado e dirigido por Saida Benzal finca o pé no lado oposto do experimentalismo. É quase como se a atriz fosse a Paul Morrissey de Armand “Andy Warhol” Rovira que recebe os créditos pelo filme – só que ao inverso. Um trecho forte, que nos apresenta uma vampira mais perturbada do que perturbadora. Criando um diálogo imagético fluido, não se mantém em sua estrutura pelo tempo em que dura. É ligeiramente cansativo, mas mesmo assim espetacular. O trabalho de som emulando as batidas de coração é uma das criações mais interessantes do filme. Por sinal, há um uso irregular dos efeitos sonoros em todas as partes de “Carta para Paul Morrissey” com a parcimônia necessária para que não roube para si o protagonismo estético. “Cartas para Paul Morrissey” é uma obra cinematográfica pautada no equilíbrio.
Eis que o longa-metragem se encerra com a melhor das cinco partes. Estrelado por Almar G. Sato no papel de Hiroko, somos apresentados a uma jovem com uma rara doença. Vivendo a base de antidepressivos e trabalhando com sintetizadores para tentar isolar os chamados hoissuru (barulhos audíveis apenas aos humanos) e entender porque há sons que apenas ela ouve – e lhe causam muito sofrimento. A partir de um fluxo meio incontrolável, é o momento em que nos sentimos, de fato, conectados e abalados com as experiências propostas pelos criadores dessa obra fantástica por vários motivos. Como dito pelo próprio Armand Rovira, a ideia inicial era gravar uma série de curtas e apresentá-los a Paul Morrissey. Porém, com o andamento da produção, se observou que era possível conectá-los como um filme longo. Não podemos nos esquivar desse fato. Afinal, são múltiplas histórias e algumas funcionam menos do que outras. Mesmo assim, na média, “Cartas para Paul Morrissey” é um trabalho impressionante de construção de imagens travestidas de homenagem apaixonada.