Coando Roteiro na Peneira
Por Jorge Cruz
Sem querer aplicar como ciência a futurologia, arrisco dizer que o produtor, diretor e roteirista Gary Wang e seu estúdio Light Chaser Animation Studios possuem um caminho de sucesso a ser trilhado nos próximos anos. Não só pela qualidade da produção de “Os Brinquedos Mágicos” (2017), mas pela eficiência na aplicação dos princípios de roteiro de gênero aplicados por Wang, mesmo que isso pasteurize e limite uma obra bastante original.
Um longo prólogo (para a dinâmica de um filme infantil) nos apresenta Natan, último infusor de chá de cerâmica criado por um senhor que abandona seu ofício ao se tornar viúvo. Ao começar a conviver com outros objetos de seu grupo (infusores em formato de sapo, de porco, dentre outros), o protagonista se incomoda com uma importante diferença em sua constituição: ele não muda de cor quando é molhado com água quente. Isso retira qualquer chance de ser comprado, além de fazer com que não seja sequer usado na casa de chá onde mora.
Esse argumento aproxima o espectador ocidental desse longa-metragem chinês ao remeter a “O Patinho Feio”, conto de Hans Christian Andersen do século XIX. Porém, diante de um ambiente pós-moderno diametralmente oposto ao romantismo onde HCA estava mergulhado, não há muito espaço para comportamento vitimizado de Natan. Suas atitudes transitam entre um revoltado anti-sistema, também chamado de outsider (não no termo político) e um discurso de empoderamento forçado, que consegue até o aproximá-lo de algo como uma liderança de grupo, uma espécie de coach com ressalvas.
A aventura, de fato, se inicia com a chegada de um elemento externo: um robô em formato de bola, que se diz do futuro e mistura em sua formação a leitura de ambientes de RoboCop com a autonomia de conhecimento do mais básico protótipo de J.A.R.V.I.S. A companhia do apelidado Futurobô fará com que Natan saia de sua zona de conforto na tentativa de encontrar o Grande Mestre, aquele que explicará o porquê do infusor não mudar de cor e o ajudará no tocante a essa questão (já que o assunto é outsider).
Portanto, “Os Brinquedos Mágicos” utiliza um protagonista que opta por desestabilizar sua vida para encontrar uma estabilidade mais coerente com seu papel no mundo. Todavia, as maneiras utilizadas pelo roteiro não compõem um organismo uniforme. Vale observar que o corriqueiro é nos depararmos com animações que pecam pela falta de ferramentas de ancoragem da trama. Partem de argumentos fáceis para desenvolvimentos óbvios – sequer criando expectativa acerca da conclusão. Já “Os Brinquedos Mágicos” é quase como o oposto disso. Ele abre mão de um conjunto de personagens bem criados em mais de uma oportunidade para criar dinamismos que talvez não fossem tão necessários.
Veja, por exemplo, o infusor de porquinho, elevado ao cargo de alívio cômico do filme. Sua existência não é somente dispensável. A tentativa de retratar algo como os realizadores de “A Era do Gelo” (2002, Chris Wedge e Carlos Saldanha) fizeram com o esquilo Scrat, sempre à margem da trama principal, não surte efeito. Outro caso observado (ainda pior) está na imposição de um romance sem nenhum sentido. A inserção da donzela em perigo, que por coincidência é uma peça de cerâmica da mesma fornada do protagonista, gera uma ideia de afetividade tão sem fundamento que mesmo diante de uma animação é flagrante a falta de química do casal.
O longa-metragem se revela um excelente exercício de histórias, quase um laboratório de roteiro. Boa parte dos personagens do grupo de infusores que se relacionavam na casa de chá tão bem caracterizados no ato inicial, é completamente abandonado em um piscar de olhos. Isso acontece em outros dois momentos do filme.
Por um lado essas escolhas tornam a dinâmica louvável, com um leque de cenários, ambientes e situações que comungam para o ritmo regular. Por outro, o dinamismo exacerbado pode ser um teste de concentração bem complicado para o público-alvo. O espalhamento de personagens e suas subtramas pesa na parte final do segundo ato. Há uma trifurcação de montagens que pode provocar dificuldades de assimilação nas crianças.
Por fim, a ousadia de alguns momentos perde espaço para uma volto ao convencional. A famigerada e dogmática jornada do herói faz com que o protagonista precise ser definido com rigor, em uma trajetória edificante. Isso torna a reivindicação que Natan faz pelo poder de resolver tudo sozinho no ato final levemente anacrônica em relação ao ambiente criado. Ou seja, “Os Brinquedos Mágicos” se esforça tanto para não ser genérico que deixa pontas soltas e conexões frágeis demais. Optar pela originalidade é algo que merece destaque, mesmo que o projeto de Gary Wang vá abandonando bons soldados pelo caminho sem qualquer cerimônia.