BR Trans
Um vergonhoso pódio
Por Vitor Velloso
Durante o Festival do Rio 2021
“BR Trans”, o novo documentário de Raphael Alvarez e Tatiana Issa procura discutir a realidade das pessoas transexuais no Brasil, o país que mais marginaliza e assassina no mundo. O filme procura estruturar a discussão com duas frentes distintas: registros e depoimentos de seus personagens, além de uma peça teatral protagonizada por Silvero Pereira. Assim, os diretores utilizam das diversas narrativas contadas pelo ator em sua apresentação, para conseguir unir um maior número de histórias e mostrar que apesar de diferentes localidades, oportunidades e idades, as violentas semelhanças são inúmeras.
O longa trabalha com seu poder de síntese nos registros, conseguindo evitar se prender aos materiais de arquivo e sequências expositivas. Contudo, provoca constantemente o espectador com breves imagens que atravessam a montagem, com cortes rápidos e secos que expõem pessoas trans assassinadas. Essas sequências não vulgarizam o trabalho de compreensão da real situação, pelo contrário, cumprem o importante papel de materializar o que os dados impessoalizam. É comum que filmes utilizem a violência gráfica com intuito de choque gratuito no público, mas “BR Trans” está consciente dos efeitos e gera o desconforto por reconhecer que as histórias não contadas tiveram o mesmo fim. A brutalidade da realidade é exposta pelas sobreviventes que não hesitam em denunciar as violências que sofreram, continuam sofrendo e presenciaram. Não por acaso, Silvero estampa o nome de diversas trans em seu corpo durante sua performance, para identificar as vítimas de uma sociedade que mantém o terrível pódio há anos.
O trabalho da montagem é organizar as falas para dar sentido ao todo, ou seja, fazer com que a discussão não seja apenas a explicitação dessa violência mas a exaltação dessas vidas e propor a reflexão de uma resolução. Nesse caminho, Rodrigo Brazao e Raphael Alvarez desenvolvem uma perspectiva capaz de ligar cada uma das personagens sem que esses recortes sejam arbitrários. Por essa razão, não existe uma conformidade inerte no filme, que se contenta com divulgar dados, relacionar as histórias por meio das agressões e tratar a morte como um fim comum. A fim de romper com o fatalismo, “BR Trans” possui três momentos distintos que intercalam os registros: a denúncia, a raiva e a sobrevivência. Ou seja, parte de etapas não demarcadas de uma obra predisposta a fugir do lugar comum. Desta forma, quando a performance cruza as pessoas reais, não há sobreposição que interfira diretamente no andamento do documentário. Isso faz com que o enquadramento direto da peça de Silvero adicione à discussão, sem grande perda de ritmo. Porém, a articulação dessa linguagem nem sempre funciona bem, já que a dinâmica da encenação é de grave contraste quando o registro real vem à tona. Tal relação é feita apenas na oralidade, o que reforça a necessidade dessa montagem ater-se ao rigor de suas narrativas.
Onde a realidade e a ficção passam a dialogar de maneira direta, o sentimento de proximidade com as personagens ganha relevância na experiência, fortalecendo o afeto e a compaixão pelas vidas perdidas e as que lutam por respeito. Portanto, o próprio título surge como uma provocação de atravessamento, localizando o Brasil como esse espaço de violência, onde o tempo demonstra sua chaga na pele e memória de cada uma das pessoas que surgem no longa.
É interessante notar que o trabalho conjunto de Raphael Alvarez e Tatiana Issa possui camadas que vão além das cabeças falantes e material de arquivo para costurar suas intenções cinematográficas. De “Dzi Croquettes” (2009) para o atual “BR Trans”, as temáticas podem se relacionar, mas suas formas se distanciam e constatam uma maturidade para trabalhar no gênero do documentário que não se prende na exposição ou mantém padrões. Uma dupla que cumpre lacunas importantes e pensa os formatos de maneira individual.