Borgen: o Reino, o Poder e a Glória
Colonialismo pós-moderno
Por João Lanari Bo
“Borgen: o Reino, o Poder e a Glória” é a série que pretende tirar vários coelhos da mesma cartola: mudanças climáticas, colonialismo pós-moderno e o papel da mídia e das redes sociais na condução da política, para citar alguns dos grandes temas que se desenrolam na trama. O epicentro de toda essa complexidade é o reino da Dinamarca, sim, aquele que foi eternizado nas palavras de Shakespeare, no inigualável Hamlet: há algo de podre no reino da Dinamarca. Um reino que é uma monarquia constitucional com sistema parlamentar de governo, composto por uma grande península, a Jutlândia, e 443 ilhas, das quais 78 habitadas – com cerca de 6 milhões de habitantes. A Groenlândia e as ilhas Faroé integram o Reino da Dinamarca, mas gozam de autonomia e grande medida de autogoverno: ambas possuem dois membros, cada, no parlamento dinamarquês. Groenlândia, essa imensa ilha coberta de gelo, a maior do mundo, é um dos focos das peripécias que a principal personagem, Ministra do Exterior Birgitte Nyborg, experimenta, ao lado, é claro, das turbulências da sua vida afetiva.
Esse o grande mérito artístico da série: a imbricação habilmente construída entre as flutuações que Birgitte atravessa em sua vida privada, calibradas pela competente atriz, Sidse Babett Knudsen, com os sobressaltos impostos por sua inserção numa esfera pesada de poder. Sua carreira corre perigo quando uma controvérsia relacionada ao petróleo na Groenlândia vira uma crise internacional, afirma a sinopse da produção. Mas Birgitte não está apenas se adaptando mal a este mandato como Ministra: ela também está se adaptando mal à menopausa, depois de sobreviver ao câncer de mama na temporada anterior. Não esconde de seus subordinados sobre as ondas de calor que sente, e mantém um guarda-roupa no trabalho em caso de emergência. Ela também come mal e dorme mal. Entretanto, não é nada que se compare à dureza da pressão que sentia quando era Primeira-Ministra, nas três temporadas anteriores, que começaram (ficcionalmente) em 2010.
Pelo menos é isso que Birgitte confessa à sua ex-assistente e agora diretora de jornalismo na TV, Katrine, encarnada por outra boa atriz, Birgitte Hjort Sorensen. Em 2022, ela é uma divorciada que enfrenta a solidão, agravada pela obsessão de workaholic, mas não se sente culpada por ser mãe distraída ou esposa negligente – e pode concentrar toda sua energia no trabalho. A manipulação do tempo concatenada pelos roteiristas é magnífica: breves menções à pandemia e mesmo à guerra da Ucrânia fornecem um rastro de contemporaneidade que contribuem para a impressão de verossimilhança do enredo ficcional. “Borgen: o Reino, o Poder e a Glória” se baseia em premissas com sólidas ramificações no real: para dar uma ideia, ninguém menos que o ex-Presidente Trump propôs, em 2019, comprar a Groenlândia! Aborrecido com a falta de interesse da Primeira-Ministra dinamarquesa Mette Frederiksen (a verdadeira PM, a segunda mulher a ocupar o cargo) em discutir a proposta, cancelou abruptamente a visita de trabalho que faria a Copenhagen. Não foi a primeira vez que os norte-americanos fizeram essa oferta, digamos, inusitada: os interesses na ilha vão desde o controle dos acessos estratégicos, que tendem a ficar mais sensíveis com o derretimento das geleiras e o aumento das vias de transporte, ao petróleo – estima-se que o Ártico, onde a Groenlândia está localizada, detenha 13% das reservas de petróleo a serem descobertas no mundo – e às famosas terras raras, minerais imprescindíveis para a moderna indústria microeletrônica.
Rússia e China, não é preciso enfatizar, são os dois grandes rivais, além dos EUA, a atazanar a vida de Birgitte na ficção serial, e também na realidade nua e crua dinamarquesa: espremida entre esses gigantes, lidando ao mesmo tempo com a pressão da população local pela independência política, a Dinamarca equilibra-se como pode. E também nossa heroína: Birgitte tem de encarar a carência sexo-afetiva, conviver com o radicalismo ecológico do filho e, para arrematar, sobreviver às escaramuças dos jogos de poder da política parlamentar, que realçam o melhor e o pior de sua personalidade.
Uma leitura severa classificaria “Borgen: o Reino, o Poder e a Glória” de exercício colonialista pós-moderno: uma potência light como a Dinamarca administrando os anseios do povo da Groenlândia, quase 60 mil almas de inouites, indígenas esquimós que habitam a região há priscas eras, em pleno mundo globalizado do século 21. Em março de 2022, a PM dinamarquesa desculpou-se publicamente a seis representantes inouit, que estavam entre as 22 crianças enviadas a força da Groenlândia para a Dinamarca, em 1951, a fim de tornarem-se groenlandeses “modelos” e unir as culturas dinamarquesa e indígena. O projeto era arbitrário, e não funcionou. A Primeira-Ministra disse, constrangida: o que vocês foram submetidos foi terrível; foi desumano, injusto e cruel. Birgitte diria o mesmo, com constrangimento calculado. Vida que segue, e que continua a imitar a arte.