Boa Sorte, Leo Grande
Onde está Maria do Egito?
Por Giulia Dela Pace
Por ordens de autoridades católicas, motivadas pela Santa Maria Egipcíaca – também conhecida como Maria do Egito – iniciaram construções de casas Egipcíacas a partir do século XIV na Espanha. Eram estabelecimentos para mulheres que decidissem abandonar a “vida pública” e converter-se, como teria feito Maria do Egito segundo Sofrónio. Maria “trabalhou” como prostituta desde os 12 anos para conseguir sobreviver. E foi através da venda de seu corpo, ainda infantil, que ela conseguiu fazê-lo, assim como tantas outras mulheres “públicas” que ainda hoje dependem da exploração sexual e violação de seus próprios corpos para subsistência. E “Boa Sorte, Leo Grande”, dirigido por Sophie Hyde, parece se esquecer disso.
O longa é uma comédia divertida sobre uma mulher de 50 anos, Nancy Strokes – interpretada brilhantemente por Emma Thompson –, que nunca teve um orgasmo e esteve sempre presa aos dispositivos amorosos e maternos que a impuseram ao longo da vida. Um furacão de emoções e relatos provavelmente nunca confidenciados a outras pessoas, que se aproveita da morte de seu tedioso marido para decidir contratar um jovem homem “público”, Leo Grande (Daryl McCormack) para se livrar de algumas frustrações. Esse, por sua vez, é uma figura calma, atenciosa, misteriosa e definitivamente tão ambígua quanto Nancy quanto se trata de honestidade sobre pautas que se ligam de alguma forma aos tabus do sexo.
Apesar do tema do filme soar apenas como uma hora e poucos minutos de uma cinquentona tentando tratar de seus desprazeres carnais com um garoto “público”, os problemas relacionados diretamente ao “ato bíblico” acabam por ser apenas sintomas de mazelas socioculturais do ocidente, de opressões de gênero e repressões sexuais muito mais graves, profundas e frequentes do que o filme deixa aparentar, mesmo porque cerca de quase metade das mulheres brasileiras não se masturbam. E o cenário piora quando se é pressionada a permanecer em um casamento onde sexo é tabu e ter de esperar o marido morrer para conseguir buscar o mínimo de prazer, ou nem isso.
E é dentro desse tema de tabus relacionados à falta de liberdade sexual feminina e lacunas de sentimentos eróticos – no sentido aplicado por Audre Lorde de uso do erótico como poder feminino – que “Boa sorte, Leo Grande” caminha. Vemos isso no ambiente aconchegante e reservado em que Nancy Strokes pode ser descobrir, no olhar e palavras atenciosas e calmas de Leo Grande e nos problemas levantados pela protagonista ao longo de sua “libertação”.
Mas isso não impede o filme de construir um robusto contraste geracional quando se trata de aceitação e libertação do próprio corpo e padrões estéticos. Já que é parte do tema central do filme, pois desvenda certas pressões que mulheres sofrem com o envelhecimento e as relações com falta de empoderamento e eterna busca pela felicidade da aceitação. “Boa sorte, Leo Grande” aconchega e liberta Nancy espacialmente quando é necessário, trabalha delicados temas freudianos e levanta em alguns momentos o complexo e espinhoso debate moral e ético da prostituição.
Inclusive, o único momento em que Leo Grande se sente atacado ou violado em sua “prestação de serviços” é quando a protagonista o trata como prostitutas usualmente são tratadas por homens. Mas a obra foca muito mais em aceitação do corpo e sentimentos positivos ao sexo, aparência estética e da satisfação sexual feminina do que no problema que a protagonista encontra sua solução.
Então temos uma mulher branca de classe média entediada que sofreu repressões e opressões de gênero a vida inteira e isso a fez fruto abusivo da própria violência que recebeu. Enquanto o filme defende a legalização da prostituição e suaviza problemas relacionados a exploração sexual do corpo, Leo Grande é um homem que escolheu ser de uso “público”, mas com restrições impostas por ele.
Qual escolha teria uma mulher pobre ou uma mulher trans expulsa de casa que teve que vender seu corpo para sobreviver? E Maria do Egito teve alguma escolha? Portanto, a invisibilização da maior parcela de representantes desse tipo de “serviço” – que é explorada, traficada e humilhada – é o grande defeito do filme. E por mais que seja uma obra divertida e importante para outras pautas feministas e quebra de tabus, é sempre bom lembrar da heterogeneidade do tema e que muitas vezes uma realidade fílmica e seus ocultamentos podem contribuir para discursos potencialmente perigosos.