Bebia, à Mon Seul Désir
Ariadna e o fio
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Roterdã 2021
Integrante da mostra competitiva oficial de longas-metragens do Festival de Roterdã 2021, “Bebia, à mon seul désir”, de Juja Dobrachkous, realizadora estreante na direção de longas-metragens, nos reitera que todo retorno ao núcleo familiar traz consigo o estrangeirismo. Quem saiu e experimentou novos ares e possibilidades não consegue mais se adaptar ao antes. É o caso da jovem modelo Ariadna, que é chamada para o funeral de sua avó em um pequeno vilarejo na Geórgia. Lá, durante a tradição peculiar do processo de enterro, ela rememora a carga emocional e a chantagem psicológica. Conduz-se o espectador pela narrativa de ensaio à naturalidade. Uma encenação-performance do cotidiano, por micro-ações, partes-detalhes em foco (um rosto, por exemplo) e personagens (corpos inteiros) em extracampo (fora de quadro). Tenta-se a espontaneidade realista, mas com distanciamento teatral. Esse conflito gera estranheza. A câmera, de longe, observa crianças brincando.
A fotografia em preto-e-branco, que paralisa o tempo, o deixando livre e suspenso, remete à atmosfera poética da contemplação, à semelhança estrutural do cinema de Bela Tarr, por um contraste de luz, sombras e insinuações existenciais. Ariadna é novamente exposta à “radiação” de crenças condicionadas-pragmáticas-convencionais (e retrógradas) que deixou para trás. “Mulheres não têm depressão, só homens preguiçosos”, intensifica-se, após um encontro constrangedor com sua mãe amargurada. “Bebia, à mon seul désir” é um filme-coral, de vanguardistas instantes-fragmentos, digressões, insights, flashbacks e elipses de tempo, ora continuado, ora remontado. De vidas acontecendo em cortes bruscos (intervenção na edição para “matar” o fim da cena, entre desfiles de moda, “infâncias enterradas”, “mortos” que voltam para “assombrar” os sonhos (“brigar com a força” da “presença”) e até referências às “pernas” cinematográficas de François Truffaut (uma crítica ao machismo estrutural – meninos sempre com poder do foco).
Outro ponto crucial (e determinante) do filme é sua estética, e ainda que a fotografia se apresente como uma ode imagética, que “rouba” o protagonismo, tornando-se mais importante que a própria história ao se transmutar em outras referências, como a do cinema romeno. Pelas palavras do diretor de fotografia e cineasta Walter Carvalho, isso é o que nunca se deve escolher em uma obra. “Bebia, à mon seul désir” adentra assim no nonsense e Ariadna perde seu controle. Ela se questiona o porquê de tudo aquilo: os “estranhos” costumes próprios. Nossa protagonista descobre que, como é o membro mais jovem da família, deve realizar um ritual especial. Diz-se que uma antiga tradição se refere ao mito grego de Ariadne e seu fio. De “mostrar ao espírito de sua avó o caminho para o túmulo”. Uma ligação etérea-mítica-mística de se prender para sempre no lugar (ajudada por um jovem com “inclinações filosóficas e atormentado pela dúvida”), que a leva de volta a si mesma. Aos vivos e aos mortos. “Bebia, à mon seul désir” (literalmente “Baby, é meu único desejo”) é sobre a obrigação de ter que ficar. De seguir crenças por protocolo e diplomacia. Se recusar, ficará presa aos mortos, se fizer, aos vivos.