Batem à Porta
Presos com uma escolha
Por Pedro Sales
Um dos cineastas mais cultuados pela nata de cinéfilos, M. Night Shyamalan, retorna aos cinemas com “Batem à Porta“. O diretor indiano teve um início promissor, envolto em grandes expectativas. O sucesso de “O Sexto Sentido” (1999) fez todos os olhos pousarem no realizador. A obra subsequente, “Corpo Fechado” (2000), também conseguiu uma boa recepção de público e crítica. A revista Newsweek, em 2002, chegou a chamá-lo de “novo Spielberg”. A unanimidade categórica, no entanto, rapidamente se esvaiu conforme obras como “A Vila” (2004) e “A Dama na Água” (2006) foram lançadas. Se alguns deram as costas para o diretor, muitos mantiveram-se firmes às ideias de Shyamalan. A imortal revista Cahiers Du Cinéma, inclusive, saiu em defesa do filme protagonizado por Bryce Dallas Howard, destacando a trama fabular e a forma como o cineasta filma os encontros com o novo, o que garantiu ao longa a sétima posição na lista de melhores do ano de 2006.
Neste filme, diferente do último longa, “Tempo” (2021), o diretor parece alcançar a unanimidade de outrora ao retornar à temática de contraste entre crença e ceticismo. Talvez, dos filmes que vi do diretor, este seja um dos mais assimiláveis, concisos e de ampla aceitação – a distribuidora agradece. A trama não se propõe a realizar inúmeras viradas de roteiro (plot twists), que se tornaram marca registrada e até mesmo uma espécie de piada quando se fala no diretor. Pelo contrário, ele é bem alinhado com o argumento, baseado no romance “O Chalé no Fim do Mundo“, de Paul Tremblay. É um casamento perfeito. O livro e seu enredo são totalmente condizentes e afins da obra de Shyamalan, sobretudo na criação da tensão.
Quando a pequena Wen (Kristen Cui) é abordada pelo enorme Leonard (Dave Bautista), não demora até o público perceber que há algo de errado. A mise-en-scène evidencia isso pelo uso de close-ups extremos nos rostos, com ângulo holandês (levemente inclinado). Dessa forma, transmitindo visualmente o crescente desconforto em tela. Ao alternar plongées e contra-plongées (visto de cima e de baixo, respectivamente), a fragilidade infantil é evocada. Logo depois, os ânimos se afloram no momento em que Leonard e seu grupo tenta invadir a casa da criança e de seus pais. A invasão sem motivo aparente, subjugando a família se assemelha um pouco a “Violência Gratuita” (1997), de Michael Haneke. As semelhanças, contudo, param por aí. O que motiva os invasores não é o puro sadismo, mas um altruísmo forçado. A decisão dos três é determinante para impedir o apocalipse.
Em “Batem à Porta“, Shyamalan incorpora o fim do mundo e eventos apocalípticos como motriz da obra, um retorno simbólico a “Fim dos Tempos” (2008). Se no início o longa possui uma aura de filme-de-cerco, em que Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge) tentam impedir a violação da cabana, após essa introdução, ele se estabelece como suspense. As quatro figuras: Leonard, Redmond (Rupert Grint), Sabrina (Nikki Amuka-Bird) e Adriane (Abby Quinn) são arautos do fim. A família deve escolher sacrificar um dos três para salvar o mundo. Existe uma alegoria bíblica nessa relação de apocalipse, seja por meio do quarteto ou pelo sacrifício abraâmico imposto. A discussão torna-se, portanto, filosófica. A corrente utilitarista, fundada por John Stuart Mill, está implícita nas sombras da decisão familiar. A morte de um significa a salvação de bilhões, mas quem em sã consciência escolheria os outros em detrimento dos seus?
Além disso, a violência da invasão e as armas rudimentares colocam em xeque a veracidade do que os quatro afirmam. O contraste entre fé e dúvida é tangível, na medida em que o público tende ao ceticismo do casal, compartilhando da visão de que os invasores são lunáticos conspiracionistas. Nem mesmo as provas convencem (às vezes, o programa é gravado). A desconfiança acerca das intenções do quarteto é onipresente. O cineasta consegue, entretanto, minar aos poucos o questionamento, tanto nos personagens quanto no público, em um contraponto com a fé e aceitação.
O suspense de “Batem à Porta” depreende-se por meio do enclausuramento na cabana. O minimalismo cênico – apenas dois cenários se for parar para pensar: dentro do chalé e fora do chalé – reforça constantemente a angústia e a claustrofobia. A situação dos personagens parece incontornável, uma vez que o isolamento geográfico da cabana não permite contato exterior (tecnológico ou gritos de socorro). A fuga não é opção. Eles estão presos com os invasores e com uma escolha execrável. A condição aprisionante causa desorientação dos personagens, os quais tentam buscar nos flashbacks motivações e amparo. Andrew, por exemplo, afirma se tratar de um ataque homofóbico – um dos cavaleiros o faz lembrar de um episódio traumático. Eric se apoia na memória da adoção para manter a sanidade.
A tensão para Shyamalan, porém, não se restringe ao claustrofóbico. O diretor entende o suspense como deve ser tratado, através do poder da sugestão. Ao filmar as cenas fora de campo, ele suscita uma ansiedade pungente. O espectador fica em um estado de suspensão esperando o próximo plano para confirmar ou negar o acontecimento. A trilha sonora, por sua vez, também é parte fundamental da criação desse sentimento. As notas graves da orquestra se contrapõem com o agudo dissonante dos violinos, o que causa uma sensação de estranheza e perigo crescente.
Nas atuações, o egresso da WWE, Dave Bautista, é, pela primeira vez, protagonista em um longa. Recentemente, o ator, em entrevista à BBC, disse estar aliviado por não precisar atuar mais como Drax, personagem de “Guardiões da Galáxia“. “É uma performance boba, e eu quero fazer coisas mais dramáticas”, afirmou o ator. Na obra, Bautista pôde explorar melhor essa faceta dramática, pois a complexidade que permeia o personagem e a narrativa em si consegue ser fruto de discussões e reflexões.
“Batem à Porta” traz Shyamalan em um terreno seguro, com grande potencial de boa recepção (de crítica e público). A questão central do longa, às vezes, se repete – algo natural em razão do cenário reduzido. Ainda assim, é um tema rico e que, mesmo martelado em demasia, leva o espectador a se questionar o que faria estando no mesmo lugar. O “retorno” do cineasta, por assim dizer, ultrapassa a temática apocalíptica e catastrófica de obras anteriores, caminha pelo embate entre crença e ceticismo e se encerra como um bom exercício do suspense, gênero que foi para o diretor fonte de ruína e também de glória,