Balanço do Festival de Cinema de Berlim 2023
Durante doze dias, a capital da Alemanha se organiza para receber filmes, encontros, homenagens, artistas, geografias e muita cinefilia
Por Fabricio Duque
Nós, humanos pensantes, somos seres muito estranhos. Acreditamos realmente que podemos controlar todas as coisas, até mesmo a cobertura de um festival de cinema (e de alcance internacional). Em nossa mente, a programação está totalmente organizada, sistemática e cirúrgica. Nós criamos inclusive planos B e C para que se algum empecilho ocorrer rapidamente possamos recalcular a rota. Sim, está tudo milimetricamente lá em nossa cabeça. Mas na prática, quando a ação encontra o “in loco”, essa agenda chega mesmo ao cúmulo da utopia, quase comparada a um campo de batalha da Idade Média ou a algum capítulo do seriado “Game of Thrones”, que a luta é definida ora por sorte, ora por ajuda divina, ora pelo simples fato de que as coisas simplesmente acontecem, como ficar preso em metrô parado por causa de um problema técnico. Tá, isso não aconteceria em uma dessas batalhas antigas, mas o cavalo poderia fugir, isso poderia. Pois é, ainda que nosso controle potencialize a tensão de que precisamos estar cem por cento preparados para desvios e/ou imperiosas necessidades de mudanças, umas bem complicadas para realocar horários, por exemplo, o próprio Festival de Cinema de Berlim 2023 (foco deste texto balanço geral da edição 73), mais conhecido pelo nome original alemão Berlinale, resolve “ajudar” quando divulga sua programação oficial. Aí, nós nos damos conta que especialmente nisso, não temos controle algum, pelo contrário, somos ovelhas disputando lugares, lutando para que alguém desista de algum filme e torcendo para que Murphy esteja dormindo. Ou melhor, que esteja no cinema. Só que talvez esse ser da lei estranha citado acima possa estar com insônia.
O preâmbulo busca construir o caminho desta análise sobre o que aconteceu no Festival de Cinema de Berlim 2023, que “costumeiramente” começa como uma metáfora de um mar sem ondas (de águas calmas à moda Caribe de ser) para rapidamente se “revoltar” desencadeando uma correnteza que nos deixa à deriva no meio do oceano, cansados, baratinados e sem forças para nadar. O objetivo então se ressignifica: sobreviver para não morrer na praia. Sim, nós também precisamos pontuar que esse navio no meio desse maremoto (sempre com um iceberg para desviar) sofre com a mesma errônea decisão do comandante do Titanic: força máxima nas turbinas. Sim, nós jornalistas, na cobertura de imprensa, nos sentimos invencíveis. Cada um vive seu Titanic. Tranquilo e pretensioso em seu início e desesperador-vulnerável do meio para o final. Sentimos fisicamente os efeitos. Sim, somos estranhos porque queremos assistir a todos os filmes. E aceitamos transpor todos nossos limites em prol da sétima arte. Nós nos comportamos como evocações daqueles jovens turcos que sentavam na primeira fileira do cinema para receber as imagens antes de todo mundo. Parece-me até que na verdade os curadores desse festival que acontece na capital da Alemanha pensam muito mais em nossos quantitativos quereres megalomaníacos (“quero mais e mais!”), que acabam por se perder na fase de organização da agenda oficial. Uma enxurrada de obras cinematográficas, mais eventos, mais encontros, mais coletivas, enfim, tudo isso de “tem que ser ver, porque é importante demais” – dizem os mais “insanos” – impossibilita a lógica do próprio tempo, espaço e do fato do Festival de Berlim durar apenas 12 dias (lembrando que o primeiro é o dia 0 por apresentar apenas uma sessão prévia do filme da abertura oficial e o último um dia de repescagem).
Um outro fator que talvez possa indicar uma explicação sobre a loucura do festival deste ano é nova estrutura de retirar os ingressos dos filmes pela forma online, que funciona desde o ano passado, sendo esse artifício criado por conta da pandemia e evitar filas físicas-presenciais – como era realizado anteriormente. Ainda que esse formato contribua em muito para uma melhor organização, ainda assim há um aumento de trabalho e de ansiedade. Tudo porque os tickets ficam disponíveis dois dias antes, iniciando-se a retirada às 7:00 horas da manhã, mas há uma sala de espera, que faz com que a imprensa em muitos casos precise acordar 6:00 ou 6:30 para para conseguir a entrada de um filme mais badalado fora da competição, como “Passages”, de Ira Sachs, que 7:01 todas as sessões já estavam esgotadas. Isso talvez pode ser por conta da programação colocada em poucos espaços na grade. E também porque Berlim está totalmente em obras. Muitos cinemas próximos à área da Berlinale, como o do Sony Center, tenham fechado para reformas, que se uniam aos Palast, Cinemaxx, Arsenal, estes ainda ativos na edição deste ano. O festival não se atentou dos possíveis atrasos (ônibus demoram muito e linhas do metrô alteram rotas e param do nada) ao escolher salas de exibição mais distantes e com horários apertados. E há ainda outra questão: alguns cinemas “proíbem” o acesso a suas entradas, como, por exemplo, o Zoo Palast que só permite meia hora antes da sessão (a sugestão deles: “Ah, procure o café aqui ao lado”).
É, entendo que o Festival de Berlim esteja ainda se adaptando no meio de uma cidade que resolveu se reconstruir em todos os lugares ao mesmo tempo. Então, qual a melhor opção: permanecer próximo e abrir mão de filmes. Só que nem tudo é complicação. Há também os momentos agradáveis do dia: o café da Oat Ly! é um deles. E o melhor, de graça (se você quiser com leite, mas há café puro também) e com copo reutilizável. Acordar e salvar o Planeta! Combinação perfeita, que no meu caso eu peço um Chocolate Quente com Expresso. A cereja do bolo. O lugar do “amor” está bem posicionado na área das coletivas de imprensa (o mesmo lugar que tirávamos ingressos físicos). O tópico desse parágrafo inclui também esses espaços que nós jornalistas usamos para escrever. Este ano, tudo mudou. São lugares espalhados. Temos o Centro Oficial, o do hotel Hyatt (quase nenhuma tomada para carregar os dispositivos) e agora o localizado dentro do Berlinale Palast (mesmo espaço do show permanente Magic Mike), com muitas tomadas, mas sem “Café de graça” (que custa 3,50 euros o copo). Quando foi que Berlim ficou tão cara? Lembro de comer um croissant com um café latte e pagar 1,89 euro.
Leia também:
Tudo Sobre o Festival de Berlim 2023
Tudo Sobre o Festival de Berlim 2022
Vamos mudar o assunto para o conteúdo da curadoria? O Festival de Berlim sempre buscou ser inclusivo e político-social. A edição 73 não poderia ser diferente. Seus filmes refletem a posição da diversidade de gêneros e querendo a mensagem de “Seja o que você quiser ser”, tanto que junto à programação oficial recebemos um relatório estatístico Gender, listando quantas mulheres, quantos homens, quantos LGBTQUIA+. Um documento completo de mais de 50 páginas, com gráficos, comparativos e análises de mudanças. Em 2023, a questão maior mesmo é a guerra, em especial a da Ucrânia. Muitas obras foram selecionadas (como o excelente “W Ukranie”, “It’s a Date”, “Kiss the Future” (sobre a guerra de Sarajevo e a voz de Bono do U2) e o mais recente “Superpower” (de Sean Penn und Aaron Kaufman – uma narrativa pró Volodymyr Zelensky, presidente que não só discursou no Festival de Cannes do ano passado, e agora também Cerimônia de Abertura deste Festival de Berlim) , muitas bandeiras levantadas e muitos protestos estimulados inclusive no Tapete Vermelho pelo próprio diretor artístico do festival, Carlo.
E vocês acham que acabou? Nein. Não mesmo. O Festival de Berlim, além dos 19 filmes da Competição Oficial, e tantos e tantos outros de tantas outras mostras, ainda nos “presenteou” com a presença do realizador americano Steven Spielberg, que recebeu o Urso de Ouro Honorário por sua carreira, não só no Tapete Vermelho, mas com uma coletiva de imprensa que mais soou como uma masterclass. A Alemanha chegou a “segurar” a estreia de “Os Fabelmans” nos cinemas, tudo por causa desse Sr. de “Et” e de “A Lista de Schindler”. O prêmio da Berlinale Câmera foi para Caroline Champetier. Sim, é muita coisa. Vocês entenderam agora a loucura que é lidar com essas ondas que parecem aquelas gigantes de Portugal? Mas o Vertentes do Cinema, na verdade, minha pessoa, já aceitou nossa missão e foco jornalístico: tentar assistir ao maior número de filmes, de coletivas, de encontros e de improvisos que o Festival de Berlim oferece. Sempre achei cruel e desrespeitoso escrever sobre um filme sem pensar direto em apenas 40 minutos, visto que uma crítica é definitiva no momento em que é produzida. E que essas palavras podem alterar o curso da carreira das obras. Nosso site já “passou” dessa urgência em “ter que ser o primeiro”. Queremos mais qualidade que quantidade. Por exemplo, com certeza, a crítica de “Os Fabelmans” será muito mais completa e aprofundada após ouvir seu diretor (sentindo seus objetivos e paixões). Talvez a luta maior do Vertentes seja mesmo a de proteger a crítica contra análises instantâneas. Eu juro que tento, que me forço a mudar nos primeiros dias do festival. A ser mais rápido, mas aí meus princípios vêm à tona e me “salvam” das “necessidades” deste “novo mundo”.
Concluindo, estar de volta ao Festival de Berlim é sentir uma caldeira de emoções, como se entrássemos na água fria e tivéssemos todo nosso corpo sendo alfinetado. Só quem vive isso aqui para saber. Mas também tem que gostar. Imagine alguém não gostar de futebol (eu, por exemplo) e ter que ir aos jogos em um estádio. Sobre essa emoção, talvez o momento marco zero seja mesmo a vinheta do festival. Muitos ursos que viram partículas estrelas e são condensadas em um único Urso de Ouro. Uma digressão “viajandona”: os ursos são explodidos? Ou tudo é uma questão simbólica transcendental? Pois é. Então dessa vez, todas as críticas e matérias serão produzidas, só que com mais tempo pensante. Hoje ainda entrarão a lista completa dos vencedores.
1 Comentário para "Balanço do Festival de Cinema de Berlim 2023"
Interessante e sincera a sua crítica sobre a loucura acelerada que está invadindo os festivais de cinema também.