Mostra Um Curta Por Dia 2025

Babygirl

O desejo feminino em tempos atuais

Por Fabricio Duque

Festival de Veneza 2024

Babygirl

Sim, nosso mundo contemporâneo parece viver um paradoxo da caretice. Quanto mais avançamos, progressiva e tecnologicamente, mais nos alimentamos de pautas antigas conservadoras. Parece que toda uma luta pela liberdade resultou em um retrocesso às questões morais. Parece que cada vez perdemos mais nossas sensibilidades espirituosas e ganhamos mais o cinismo das emoções técnicas. Isso gera uma maior superficialidade do pensar e um filtro-embalagem do olhar. Essa plasticidade visual, muito influenciada pela estética de vida feliz e realizada das redes sociais, constrói um muro – uma invisível parede protetora de aceitar o próprio discernimento. Se o mundo mudou dessa forma, então, o cinema que é o espelho da realidade, teve que se adequar e remodelar seus filmes de gêneros mais eróticos. Uma dessas transformações-consequências foi como esses indivíduos sociais ressignificaram a moralidade numa polarização maniqueísta e distante de humanização. O sexo, o maior estímulo dos corpos terráqueos, adquiriu a ideia de perversão. E o desejo preliminar ao outro, algo disfuncional que precisa ser controlado. 

A cruzada de perna de Sharon Stone em “Instinto Selvagem”, de Paul Verhoeven; e/ou a conceitual cena de “Perdas e Danos”, de Louis Malle; e/ou o explícito “Nove Canções”, de Michael Winterbottom; e/ou “Azul é a Cor Mais Quente”; e/ou “Brown Bunny”; e /ou “Lolita”, entre muitos e muitos outros – a lista é bem longa, não conseguiriam atenção. Seriam cancelados por censura. Assim, o simples flerte pode ser taxado de contravenção a Deus e aos bons costumes dessa vida em sociedade. Sim, paradoxo e hipocrisia. Então, esses seres humanos são intimidados e obrigados a guardar suas libidos e vontades carnais. O resultado disso: filmes mais “amenos” e que simulam a sugestão sexual, como “50 Tons de Cinza”, por exemplo, e que, desculpem meu linguajar, não há tesão e não deixa ninguém “molhada” ou de “pau duro”. 

E em 2024, temos outro exemplo a esta nova forma (fórmula) erótica-provocativa. “Babygirl”, da A24, exibido na mostra competitiva do Festival de Veneza, e que premiou como Melhor Atriz sua protagonista Nicole Kidman, que por sua vez, já tinha ensaiado no gênero. Ela fez “De Olhos Bem Fechados”, último filme de Stanley Kubrick, e atuou junto de seu marido na época, Tom Cruise. Pois bem, o novo longa-metragem da realizadora Halina Reijn (de “Instinto“), também uma atriz holandesa, quer discutir os limites, permissões do prazer feminino e quebra da ideia de que se a mulher gosta muito de sexo é uma ninfomaníaca, além de trazer a liberdade dos fetiches e fantasias de ser uma Babygirl, mulheres que gostam de ser dominadas no sexo por um daddy, que as alimenta especialmente com um copo de leite. Mas o filme aqui não busca o tom narrativo do clímax fisiológico e sim a construção idealizada pelos arquétipos do imaginário à moda Disney, de até onde se pode ir sem ofender e/ou sem atravessar as barreiras da moralidade, esta focada no cotidiano comportamental expressivo dos estadunidenses. Por exemplo, “Babygirl” começa com uma sugestão de uma cena de sexo por barulhos de alguém tendo um orgasmo, entre uma câmera-grua de cima, e o silêncio póstumo. A narrativa, numa edição de cortes rápidos, busca acontecer entre a fábula da metafísica ao personificar o invisível sensorial da intimidade naturalista do gozo e o conto de fadas das ações automatizadas no dia-a-dia de cada um de nós. 

“Babygirl” indaga também uma análise mais psicanaliticamente científica. De estudo e experimentos. De tentar a tradução realista dos porquês, de o que faz um ser ter esses desejos e vontades em se explorar mais. Talvez a capacidade dele (o “daddy” novinho, o ator “sem sal” Harris Dickinson) em adestrar cachorros violentos. Talvez o prazer dela (a “good girl”) esteja na geração de sua vulnerabilidade. E não na normalidade confortável com seu marido (o ator Antonio Bandeiras). Ela flerta com a ideia, lança a tentação e ela deixa. Só que a forma que o filme se desenvolve pela atmosfera irreal de sonho (de uma Nova Iorque no pôr do sol com um que de apocalipse noir) causa no público um distanciamento, uma condução estranha, uma percepção artificial, uma encenação, que soa infantilizada, boba e com a sensação de que estamos assistindo brincadeiras de duas crianças em cena, entre gravata-fetiche, botox, transes, e trilha-sonora de exercícios vocais e distorções eletrônicas, algo que lembra o álbum “Medúlla”, da cantora islandesa Björk. Cada vez “Babygirl” fica mais arredado. O roteiro aumenta a carga do direto e se expõe mais ainda artificial. 

Isso tudo faz “Babygirl” ser bem naif, ingênuo, careta, pudico, confuso, vergonhoso, moralista, desconfortável e constrangedor demais. A cena que ele se faz de cachorro e/ou sua tatuagem de anjinho pode ilustrar bem o que acabei de dizer. Ainda que nós sintamos o cotidiano, especialmente nos momentos que Nicole adentra mais na contemplação existencialista de dentro. Sim, talvez a melhor definição de “Babygirl” seja a de um “coito interrompido” e/ou de punhetar, punhetar e não gozar. É, parece que este texto tem mais sacanagem que o filme “Babygirl”, que inclusive indicou Nicole Kidman no Globo de Ouro 2025. Mas quem ganhou foi nossa Fernanda Torres por “Ainda Estou Aqui”. 

2 Nota do Crítico 5 1

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