Baby
Felizes juntos no close certo
Por Fabricio Duque
Assistido presencialmente no Festival de Cannes 2024
Antes de começar este texto sobre o novo filme de Marcelo Caetano (de “Corpo Elétrico”), “Baby”, exibido aqui na Semana da Crítica do Festival de Cannes 2024, é preciso primeiro aceitar a ideia de que o desejo (uma expectativa e um “sonho realizado” de alguém por outro alguém) é o sentimento universal mais patologicamente primitivo e ininteligível que todo e qualquer ser humano vivencia em suas existências mundanas. É um verdadeiro paradoxo, porque ao mesmo tempo que realiza esse nosso querer idealizado, aprisiona também o “sortudo” com impulsos irracionais e vulnerabilidades infantis, como se fosse um vício, uma dose de endorfina.Esses indivíduos ao concordar com o “contrato” do ter, precisam aceitar as condições, consequências e influências de tudo isso e de toda uma sociedade compartilhada em subjetividades e arrogâncias ilusórias de suas crenças “recebidas”, maniqueístas e dotadas de verdades muito particulares. Talvez essa seja a emoção mais complexa e ainda sem entendimento que se haja na vida. Como mensurar esse desejo todo? Qual o limite do amor? Como conviver com a submissão de devotar a própria vida a essa paixão? E ainda ter que lidar com os olhares e opiniões superficiais e limitadas dos outros que ditam o que é certo ou errado? É, talvez o desejo seja mesmo mais um elemento joguete do Universo. E que realmente estamos em um gigante show de Truman. Esse preâmbulo serve direitinho para “Baby”, visto que a própria neurociência já construiu o fato de que é preciso apenas três segundos do olhar do outro para que todo esse desejo se instaure como uma obsessão.
Sim, “Baby” é exatamente assim. Alguém que atravessa a vida de outro alguém e fica. Mas quem disse que a realidade é um conto de fadas? Nós criamos a ideia do desejo. Fazemos planos. Projetamos um futuro. Só que a rotina repetitiva do dia-a-dia nos estimula a novos desejos. Aqui, o filme nasce na sobrevivência. No pedido de ajuda. No limite da ação. De um lado, uma personagem precisa ser cuidada. Do outro, o cuidador. Não é tão aleatório assim o título deste longa-metragem. Baby é bebê em inglês. Um ser mais indefeso e ingênuo que precisa ser criado. Baby também é um termo carinhoso que alguns casais usam entre si. “Baby” traz ainda uma questão estrutural desde os primórdios da Humanidade: a sexualidade homossexual e toda uma heterossexualidade normativa, definindo formas certas e erradas de amar. É realmente impressionante que em 2024 esses imaginários ainda sejam um problema àqueles que fogem da padronização convencional do homem e da mulher, do azul e do rosa.
“Baby” não para por aí. Aborda também a marginalização e seus efeitos físicos, psicológicos e fisiológicos da não aceitação social sobre a “existência dos gays”. E ao não encontrar respaldo, chance e refúgio nas famílias e ou nas empresas (para trabalhar), esses seres “transgressores” recorrem à hiper sexualização, “vendendo” seus corpos por dinheiro para manter a sobrevivência. E taí outro paradoxo: quem “compra” é o “cara casado” que não tem coragem de se assumir porque retroalimenta os mandamentos dessa sociedade que os coloca nessas situações (em casas-barracos e pastéis no bar). É um ciclo que movimenta milhões na economia. Já é comprovado que sexo é o “produto” que mais vende em todo Planeta Terra. Nós somos movidos e motivados por esse desejo (por que então não “legalizamos” logo e vivemos em paz?). Enfim. “Baby” reacende todas essas discussões ao criar a história de dois homens (garotos de programa) que persistem vivendo em busca de dias melhores, entre prisões e “liberdades”, a intimidação das batidas policiais, humilhações, furtos, pais intolerantes e clientes.
Sobre a narrativa, “Baby” consegue imprimir a forma naturalista e mais direta de um cotidiano mais coloquial (sugerindo referências às obras do cineasta português João Pedro Rodrigues, à versão inglesa da série “Queer as Folk”, e principalmente a “Felizes Juntos”, do chinês Wong Kar-wai), muito complementada pela fotografia que cria a ambiência do desejo estimulado. Os corpos pululam tesão, malhação, suor, cicatrizes, pelos e nudez explícita. A câmera aqui (com um que voyeur) precisa e sóbria, entre reflexos, atravessamentos e sombras, ambientando o redor, contempla e acompanha as personagens em seus propósitos buscados. Nós somos convidados a entrar neste meio normal queer de travestis, “bichas chatas”, “veteranos” e novinhos. Quando o encontro de dois personagens se encontram (nesse amor “que não tem regras para se apaixonar”), nessa vida fluída, nesse submundo do crime, compreendemos mais a relação meio baby, meio sugar daddy, que quer ajudá-lo a sobreviver melhor: boxe; dicas sobre fazer o cliente “gozar mais rápido” e não ser “amador”, tudo ao som inclusive de uma samba de Alcione e especialmente com “Baby”, de Caetano Veloso, por Gal Costa. “(Você) Precisa aprender o que eu sei e o que eu não sei mais”.
Mas, como disse, é preciso tomar cuidado ao mergulhar no desejo, porque sempre (sem exceção mesmo) esse sentimento adquire a forma ciumenta de relação de posse ao objeto apaixonado. É, sim, manter o equilíbrio narrativo do início ao fim de um filme é muito complicado. E “Baby”, ao aumentar elipses, instantes fragmentados do tempo e um afã de querer abordar todas as questões relacionadas ao mundo LGBTQIAPN+, “derrapa” um pouquinho no ritmo. Só que este é apenas um micro detalhe dentro de todo o contexto que o filme é apresentado. A maestria de “Baby” está em seu roteiro sensível (e em toda sua brasilidade universal) e na irretocável interpretação-método de dois atores: o estreante João Pedro Mariano como Wellington, o Baby, e Ricardo Teodoro como Ronaldo, que internalizaram suas personagens de tal forma que não há resquícios de encenação. “Baby” acertou no close certo.