Assim Estava Escrito
Cidadão Shields
Por João Lanari Bo
Desde que o cinema entrou na era digital, sua própria natureza passou a ser objeto de debates calorosos: o cinema morreu? A quantidade e a diversidade de suportes de consumo audiovisual só aumenta, exponencialmente…para alguns, assistir a um longa-metragem completo é algo tão improvável como ler um livro, da primeira à última página. Revisitar um clássico, “Assim Estava Escrito”, de 1952, é uma experiência, à primeira vista, arqueológica: sob um olhar mais atento, ela pode se revelar atual e instigante, como são aliás todas as experiências arqueológicas dignas do nome. O diretor, Vincent Minnelli, é reconhecidamente um dos mais exigentes estetas de Hollywood: o produtor, John Houseman, é um romeno que foi para a América e tornou-se um prolífico agenciador de talentos, começando com Orson Welles, com quem colaborou no rádio e teatro (mas terminaram se afastando durante a escritura do roteiro de “Cidadão Kane”). E por falar em roteiro: quem escreveu foi um dos melhores, Charles Schnee, autor entre vários outros do faroeste “Rio Vermelho” (1948) e o belíssimo melodrama social “Amarga Esperança”, que Nicholas Ray dirigiu, também em 1948.
Um time de primeira: Schnee acabou levando o Oscar pelo roteiro, assim como Kirk Douglas, melhor ator, e Gloria Grahame, coadjuvante. A sagrada estatueta também foi abocanhada pela fotografia, direção de arte e figurinos. Tudo isso para contar uma história cáustica e demolidora sobre…Hollywood! Logo no começo, Jonathan Shields (Douglas) comanda o enterro do pai, um ganancioso e odiado produtor de cinema, pagando propinas para os presentes, a fim de simular uma popularidade imaginária do defunto. Começar filmes no cemitério já é em si, ademais de recurso batido, um sintoma hollywoodiano – mas vincular a cena a um estratagema como esse é satirizar pesado na largada. A próxima sequência mostra um produtor-adjunto recebendo três representantes da máquina de sonhos cinematográfica: a atriz Georgia Lorrison (Lana Turner), o diretor Fred Amiel (Barry Sullivan) e o roteirista James Lee Bartlow (Dick Powell), cujo traço comum foi trabalhar intensamente com o produtor Jonathan Shields até serem impiedosamente descartados.
“Assim Estava Escrito” evolui com rara habilidade entre flashbacks que organizam motivações e decepções, desde os primórdios da carreira de Jonathan – começou produzindo filme B, monstros e afins estilo Boca do Lixo – até o sucesso obtido por meio de uma (neurótica) dedicação ao trabalho. Um traço marcante de sua personalidade é a depressão que o atinge após momentos de euforia – depois do esforço colossal para viabilizar Georgia Lorrison como estrela em uma de suas produções, ele, na noite da estreia, abandona a festa de celebração, e, pior, surpreende a atriz – a essa altura apaixonada por ele – com uma surpresa devastadora.
Em uma de suas falas, Shields compara essa sua característica com um abatimento pós-coito, um vazio enorme que toma conta no momento que o filme está concluído. A cena que sucede a rejeição de Gloria é uma das melhores – é como se uma ferida fosse aberta, ela parte alucinada em seu carro, no limiar de um acidente fatal. Ambos compartilham um drama edipiano: amam e odeiam seus respectivos pais. Em “Assim Estava Escrito” não há espaço para sentimentos serenos, tudo é arrebatamento, exagero sentimental. E a narrativa é especular – afinal, estamos num filme que se passa nos bastidores do cinema, gênero saturado na grife hollywoodiana, desta feita, entretanto, articulada com um olhar cínico e arrasador, ao mesmo tempo impecável em sua construção técnica. Travellings magníficos ilustram o set de produção, com luzes e sombras, partindo do plano da atriz, para em seguida vislumbrar o produtor, o realizador, os técnicos de som e de luz, e terminar num holofote.
Kirk Douglas lembra o perfeccionismo de Minnelli – sempre cantarolando e reorganizando os props, ele realmente sabia o que estava fazendo. Mas também o mau humor: Vincent estava sempre irritado com todo mundo, menos comigo. Ele sorria para mim com aprovação e então criticava duramente alguém. Às vezes, ele pode ser muito impaciente e irritado com incompetência de um ator.
Vincent Minnelli afeiçoou-se à história desde o primeiro contato, como disse:
O roteiro me fascinou. Isto de falar de um produtor de cinema que usa a todos em sua ascensão ao topo…. é uma história dura e cínica, mas estranhamente romântica. Tudo o que se amava e odiava sobre Hollywood foi destilado no roteiro.
O título original, “The Bad and the Beautiful”, exprime com mais clareza o substrato do filme. Não se conhecem as premissas lógicas que orientaram os distribuidores nacionais para nomear o filme como “Assim Estava Escrito” (em Portugal ficou como “Cativos do Mal”). Esse é mais um enigma para os arqueólogos do cinema.
1 Comentário para "Assim Estava Escrito"
Amei o filme adoro filmes antigos preto e branco clássicos