As Linhas da Minha Mão
Uma paixão vulcânica
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2023
Depois de “Arábia” e sua grande contribuição no cinema brasileiro contemporâneo, João Dumans retorna a Mostra de Tiradentes com “As Linhas da Minha Mão”, documentário com traços experimentais que procura aproximar o espectador de nossa protagonista, Viviane.
Desde os primeiros minutos de projeção, sem uma diretriz clara, o filme enquadra Viviane em momentos particulares, onde o espaço da reflexividade e digressões intelectuais se abrem e passamos a nos habituar com seus pensamentos. Essa proximidade, transforma parte de seu cotidiano no longa em si, em uma espécie de confessionário não proclamado, e sem nenhuma carga pecaminosa, pelo contrário, com uma forte carga de liberdade individual, paralela ao funcionamento da sociedade capitalista. Nesse ponto, estamos sempre à margem de uma margem social, onde só acompanhamos os personagens e escutamos parte de suas histórias.
O lento ritmo dessa parte inicial do projeto, pode afastar uma parte dos espectadores, mas depois que estamos familiarizados com a personagem e as falas em torno Nietzsche se encerram, as coisas passam a fluir melhor. Isso porque Viviane passa a narrar uma série de relatos que expõem sua autenticidade, a forma como enxerga a vida, os problemas que já enfrentou pelas suas questões psiquiátricas e suas paixões. Particularmente hipnotizante, “As Linhas da Minha Mão”, demora para engatar, mas quando o faz, se torna um movimento bastante apaixonado pela presença de Viviane, que toma conta do filme e vai ganhando um tamanho imensurável em certa parte da projeção.
O caráter prosaico das histórias, descompromissadas com algum fim, é um dos charmes do longa, pois não está ancorado em uma causa particular, mas sim em traduzir ao espectador determinadas situações e emoções que não temos acesso às imagens. Nesse sentido, por mais que não tenha uma imagem sequer que não esteja centralizada na personagem, estamos constantemente à deriva de nossas imaginações, procurando uma representação dessas narrativas que vão sendo contadas. Desta forma, o diretor, João Dumans, não procura estetizar cada encontro ou cada fala, ele incorpora um certo pragmatismo na objetiva, sendo sintético e permitindo que a imersão nessa paixão pela (e da) personagem seja realmente natural. Até por isso, por mais que o início seja arrastado, ele é importante para criar uma antessala dos encontros.
Em um determinado momento, quando Viviane comenta sobre uma dificuldade que enfrentou no SUS, vemos parte de sua personalidade desprendida de determinados padrões sociais e a dificuldade que isso pode apresentar. A personagem aparece no enquadramento, carregando uma variedade de maços de cigarro e explica para um amigo que tem momentos em que ela prefere ter as variações dos tipos de cigarro, pois não quer não ter opção. Porém, esse diálogo acaba demostrando a importância do afeto e do cuidado. Por um lado, ela se sentiu desamparada pelo descaso de uma pessoa da psiquiatria do SUS, por outro, seu amigo revela uma certa solidão para encarar a vida, admitindo que às vezes é difícil querer sair da cama. Ainda que a dinâmica dessa conversa tenha um traço cômico, pelas interrupções e comentários, sua sinceridade é cativante, já que não há qualquer tentativa de omissão das duas partes, apenas as sinceras confissões de dois amigos.
Contudo, se construir o ritmo de uma obra como essa pode ser desafiador, Luiz Pretti, que assina a montagem, merece todos os créditos possíveis por transformar a particularidade dos encontros em um registro de verdadeira afeição pelo próximo, ou mesmo de transitar entre as histórias sem fazer desses saltos uma disjunção agressiva. Essa carpintaria dos momentos não permite que o filme saia dos trilhos, ou que o espectador passe a divagar durante a projeção. A sensibilidade de João Dumans e Luiz Pretti para desenvolver essa perspectiva íntima de uma personagem tão cativante, faz de “As Linhas da Minha Mão” uma obra que possui a consciência de seus limites e que os utilize a seu favor, reforçando a potência de poder escutar o outro.
E se nesse caso, saímos da sessão com a sensação de que somos amigos de Viviane, apaixonados por algo em sua personalidade, que talvez seja difícil descrever, é porque a complexidade não está no filme em si, mas na representação do encontro e na sociabilidade inerente do mesmo. Uma boa estreia da Aurora nessa 26ª Mostra de Tiradentes e mais uma demonstração que João Dumans é um nome a se acompanhar.