As Boas Intenções
Entre guitarrras e lenços
Por Vitor Velloso
Durante o Cine Ceará 2020
O Cine Ceará 2020 segue sem um grande representante da edição. “As Boas Intenções” de Ana García Blaya é um exemplo de um aspirante à cinema comercial que trava no caminho dos paixões paralelas. Uma espécie de novela com John Carney, o filme argentino pouco marca o espectador com sua passagem. O ritmo lento e a história desinteressante, acabam transformando um drama sincero em um pastiche de múltiplas decisões estéticas.
O grande desvio aqui está necessariamente na condução alienante da obra, que parece estar mais preocupada com a própria nostalgia interna que achar os próprios rumos. Assim, quase uma hora e meia de projeção se tornam uma eternidade para o público desavisado desse tom corriqueiro dos dramas pessoais e do tesão pela música, um bocado de tabaco e erros condensados. Mais de metade da obra se vai e ainda é possível se perguntar onde a costura de memórias nos levará. Essa tônica vem sendo uma tendência das obras que buscam um estudo de personagem sem uma síntese narrativa, acabam servindo como exposição de blocos culturais dos respectivos países de produção e revelam a tentativa de homologação da produção latino-americana. A verve de inquietude com as andanças de nossas dependências se tornaram um grau de referencias para Beatles e todo o balaio do rock em língua inglesa.
“As Boas Intenções” pode até carregar a proposição do título, mas patina em diversos âmbitos. A grande fórmula aqui é arrancar as lágrimas dos desavisados através desse processo de alienação de um filete da sociedade. Uns fãs de lenços de aqui e acolá pode se esbaldar no barato dramático do filme, mas a estrutura que segue essa linha entre o comercial e a “autoria” importada apenas reforça o imaginário da pirataria ideológica da burguesia nativa. Onde a abordagem transita entre suas recorrências privadas para uma sequência dramática ficcional. É um louvor às particularidades. Algo que vê o modismo de uma nostalgia musical se tornar o próprio eixo norteador.
Um sincretismo formal de Carney com autobiografia e temos o produto de consumo favorito da burguesia latino-americana, aliando esse tom lúdico com a maturidade vindoura para um projeto que se alinha aos interesses comerciais dos grandes polos. Não há grandes surpresas em “As Boas Intenções” pois toda sua construção surge de uma colagem de estruturas, surgindo na verve do prosaico e cômico para dar lugar à realidade que consome seus personagens, sempre rodeados de complexidades múltiplas. E é exatamente nesse encaixe que a infiltração alienante encontra o espaço para crescer e formalizar uma montagem que consegue dinamizar a própria mise-en-scène mas é incapaz de captar o interesse pela narrativa, que fica suspensa em estilo.
De Toronto à Havana, a homologação se constitui na terceirização da funcionalidade burguesa, transando com os louros da distribuição e premiações diversas. Não à toa, as secções do público se dará nos eixos abastados dos centros que se debruça na cinematografia consensual da América Latina. E os breves eixos das particularidades culturais fica como uma espécie de fetiche pelo mito do povo, como quem busca uma representação da superfície, jamais de uma conjuntura totalizante.
Ainda que a obra foque seus esforços nesse retrato particular de um eixo familiar, cede constantemente às forças de uma longínqua força formal que norteia as produções latino-americanas, que estão sempre a visar as premiações fora da pátria grande, buscando o aval das distribuições. É uma porta-giratória que gira sempre a favor da burguesia consolidada dos países desenvolvidos.
Em suma, “As Boas Intenções” é sincero em determinados momentos, mas parece virar parte de suas atenções ao mercado da burguesia desses países que detém as representações cinematográficas dos grandes festivais e cifras escandalosas. Vai acabar servindo de objeto de fetiche para esses eixos.
O Cine Ceará segue com uma programação que não chama atenção por suas particularidades, mas por formalizar as tendências que estão em voga na cinematografia nacional e latino-americana. Cedo ou tarde irá se tornar uma espécie de Festival do Rio e São Paulo com suas internacionalizações, sejam diretas ou indiretas.
Afinal, do que vale o reconhecimento dos nativos para as janelas dos que tudo veem?