Artigo 15
Qual é a sua casta?
Por João Lanari Bo
Festival de Londres 2019
Artigo 15 da Constituição da Índia
O Estado não discriminará nenhum cidadão com base apenas em religião, raça, casta, sexo ou qualquer um deles. Em particular, nenhum cidadão estará sujeito, apenas por motivos de religião, raça, casta, sexo ou qualquer um deles, a qualquer deficiência, responsabilidade, restrição ou condição no que diz respeito a:
(a) Acesso a lojas, restaurantes, hotéis e locais de entretenimento público, ou
b) Utilização de poços, tanques, banhos públicos, estradas e locais públicos de abrigo mantidos total ou parcialmente com receitas do Estado ou destinados ao uso do público em geral.
Ayushmann Khurrana, o ator que interpreta o protagonista Ayan em o “Artigo 15”, é um galã atípico no universo dos galãs insuflados de Bollywood: logo no seu filme de estreia, em 2012, encarnou um doador de esperma, papel difícil até nas sociedades ocidentais ditas liberais, ainda mais num país hiper complexo e onde o passado convive com o presente numa totalidade mediúnica, como dizem os exegetas. A partir daí, fez questão de interpretar diversos personagens diferenciados, desde alguém que foi sofre de disfunção erétil, passando por um gay assumido e orgulhoso, até um instrutor de ginástica machista que descobre que sua noiva passou por cirurgia de mudança de sexo – todos com um denominador comum, sucesso de bilheteria. Claro, não foi fácil: os roteiristas costumavam aplicar a velha fórmula, um herói quer parecer um herói, não quer parecer imperfeito. Ayushmann desafiou o establishment da indústria e ratificou, dez anos mais tarde – eu era o único que estava questionando. E funcionou bem com as massas também. Então eles se tornaram mais corajosos com a escrita e os conceitos, e se desafiaram também. Ficaram um pouco fora do centro e provavelmente desencadearam algumas peculiaridades.
No filme em tela, bem recebido por público e crítica, nosso galã faz um superintendente da polícia local que investiga o desaparecimento de três meninas de uma pequena vila, defrontando-se, ao longo do caminho, com histórias de assassinatos, estupro, revolta e opressão, todas ancoradas nas contradições do sistema de castas. Idealista e herdeiro de família de renda alta, funcionários públicos urbanos das grandes cidades, ele parece, no início, distante das questões candentes da Índia profunda – hierarquia social arcaica, práticas políticas corruptas, greves trabalhistas, crimes de honra. Mal fala o hindi, idioma popular, preferindo o inglês, das classes educadas: e o filme assume esse imaginário alienado, optando pela canção de Bob Dylan, Blowing in the wind, para ilustrar os letreiros de abertura. Tudo isso, entretanto, vai virar ao avesso.
O diretor, Anubhav Sinha, é um veterano que conduz “Artigo 15” com eficiência e indignação. A trama remete a vários casos reais de crimes envolvendo discriminação e estupro, em particular ao desaparecimento em 2014 de duas menores Dalits, casta de inferiores sociais, cujos corpos foram encontrados pendurados numa árvore, o que levou a onda de protestos em todo o estado onde se deu a tragédia, Utar Pradexe. Situado ao norte da Índia, com quase 205 milhões de habitantes – se fosse um país, seria o sexto mais populoso do mundo – Utar Pradexe é a expressão concentrada da heterogeneidade radical da nação hindu, nos planos cultural, linguístico, étnico, econômico, religioso, castas e subcastas – you name it – e é, também, onde evolui a narrativa.
Ayan, o herói, percorre seu caminho de conscientização em meio a uma atmosfera de medo, frequentemente enevoada, escura à noite, com lixo nas ruas por conta de greve e dalits limpando o esgoto. Não perturbe o equilíbrio, adverte seu auxiliar mais graduado, referindo-se ao pacto invisível de classe que sustenta o tecido social – e na trilha, som instrumental gutural acompanhado de baixo forte pontua sua investigação, enquanto ele desconstrói as relações sociais. Os dalits se rebelam, mas o líder, mesmo dotado de carisma romântico, parece impotente: seu contraponto é o político-monge hindu vestido com túnica cor de açafrão, favorito para ganhar as eleições, prometendo, sem meias palavras, a abolição das castas. Como bom thriller político, a retórica populista é incorporada como mais um índice de falsificação, signo caricatural da violência e desespero soterrados no pântano do passado.
Num rompante de indignação e ingenuidade, Ayan cola cópias do artigo 15 da Constituição no quadro de avisos da polícia. O Estado não discriminará nenhum cidadão com base apenas em religião, raça, casta, sexo ou qualquer um deles. “Artigo 15”, o filme, vai além desse gesto impulsivo – e toca no nervo da (suposta) harmonia social.