Armugan
Crença e mito, uma questão de dor
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de SP 2021
“Armugan”, de Jo Sol, é um filme que procura o visual exuberante em meio à narrativa lenta que vai tateando o drama de seus personagens em meio à precariedade e a fé. Aqui, a materialização da crença surge como uma chaga entre a maldição e o destino, como quem reforça a necessidade dos atos para encontrar um motivo nessa vida de deveres e obrigações. Por essa razão, a história não é desenvolvida com o dinamismo comum à indústria, pelo contrário, os personagens parecem sempre deslocados nesses grandes espaços que sempre retornam ao ponto fixo da residência, uma espécie de ética da salvação.
As ambiguidades entre o dom e a maldição são as partes interessantes de uma obra que se arrasta na maior parte da projeção, sendo pouco eficiente na construção das intrigas entre seus dois personagens centrais. O “rigor” plástico dessas imagens não possuem um propósito para além das investidas no forte contraste que procura dramatizar as situações para uma espécie de exacerbação das situações. Até pode funcionar para cadenciar essa trama que atravessa as questões da fé e da matéria com intensidades próximas, mas acaba servindo como dispositivo estilístico meio arthouse, tentando ser sóbrio nesse universo. E por mais que alguns momentos funcionem a partir da síntese entre a metafísica e o mundo miserável, onde a moral não tem vez diante de uma ética imposta pela relação humano x deidade, cabe às relações com os demais personagens criarem o conflito a partir do moralismo carnal, com situações limítrofes que desafiam o julgamento do espectador. É interessante notar que a Espanha, com uma tradição católica notável, se distingue em absoluto da formação histórica de uma fé popular, com suas imposições éticas e morais, do que vemos no Sul Global. Aliás, “Armugan” se passa no Nordeste do país e mostra muito de como essa relação geográfica implica diretamente na concepção do próprio mito basilar da narrativa.
Porém, parte dessa percepção permanece como uma questão paralela de uma obra que transita entre a narrativa clássica para criar um certo didatismo e embate da moral exterior à situação que acompanhamos, e essa constância de uma imagem saturada pela sombra, pelo medo e por um obscuro que é “inominável, indescritível e inconcebível”. A própria caracterização dos dois personagens passa por uma estranheza imediata, na figura de um servo e da condição incontornável. Funciona bem quando se desenvolve na contramão da explicação, fazendo o mito funcionar como deveria, o homem incapaz de dominar a natureza ou compreendê-la na totalidade. Para compreender o mito em si, como um relato de origem, os três corolários citados por Marcelo Pirene ajudam aqui: o primeiro se refere à “representação”, o segundo, à relação direta com o rito, e o terceiro, às implicações psicológicas do mito. E em “Armugan” vemos que essa série se faz presente tendo em vista o fim, a decisão, o carnal e o julgamento ético e moral em constante conflito. As ideias das representações e seus significados passam pela própria “pureza” das imagens, a figura da criança é o maior entrave da narrativa aqui. Mas quanto mais esse universo torna-se complexo nessa relação, mais se aproxima de uma fatalismo particular do calvário da peregrinação por um destino de incertezas. Justamente quando se aproxima das explicações, procura interiorizá-las, aceitando a narrativa clássica como ponto primordial dessa divisão. É onde a coisa desanda pro tédio.
Em boa parte da projeção as ideias parecem suspensas pela crença, com a dúvida reinando e a dor da finalidade de toda a situação recaindo sobre como seus personagens lidam com a natureza, compreendida aqui na figura dos animais e a finitude da vida, a valoração moral das decisões. A liberdade é o paradoxo que impera aqui, se o mundo parece se agigantar sobre suas figuras, seu ponto de conforto e maldição é o eterno retorno à situação inicial, uma peregrinação que não procura sentido, apenas espera os créditos finais que irá encerrar o sofrimento exposto em lágrimas pela própria descrença da moral de um mundo em completa decadência. “Armugan” possui uma série de pontos para serem desenvolvidos à exaustão, mas prefere a estetização da dor e da salvação, reforçando essa moral do sofrimento como possível redenção. Por mais que os dois atores, Gonzalo Cunill e Diego Gurpegui, estejam formidáveis, não dá pra sustentar um negócio tedioso desse.