Arca de Noé
Um estudo de nosso mundo por uma fábula evocativa
Por Fabricio Duque
Sendo religioso ou não, inquestionavelmente, não podemos negar que a Bíblia é o livro mais famoso e conhecido do Mundo. Independente da ideia de ser uma ficção pautada na fantasia metafórica (manipulando certezas ao “senso comum”) ou um guia da verdade absoluta sobre a criação do Universo, essa obra literária consegue transcender essas inquirições entre cristãos e ateus. De um lado, o medo alienante e submisso do inferno pela dúvida. Do outro, a busca racional que explique o significado da real causa (e propósitos) da vida. Aqui, nesta fábula abstrata tratada como concreta, temos a figura celestial de Deus versus a forma científica do Big Bang. Ao se interrogar isso, pela argumentação das expansões de novos pensamentos (até de novas consciências), consegue-se uma lucidez mais pragmática, mais perspicaz, menos sensível e bem menos limitada da ideia. E é esse tom provocador (de blasfémia e heresia) que a animação brasileira “Arca de Noé” quer despertar, entre o humor de coloquialismo idiossincrático e evocativo das expressões-máximas populares. Essa forma mais ficcional permite que o filme “consiga” mais liberdade em abordar todos esses questionamentos numa atmosfera de comicidade brincalhona, jocosa, espirituosa, gozadora, zombeteira, piadista e galhofeira, em que o deboche é recepcionado como caseiro, que vai além da crítica sócio-religioso.
“Arca de Noé” quer construir uma cacofonia intermitente das referências culturais dessas expressões já automatizadas pelo popular. Ao inserir essas máximas em sua totalidade contextual, o longa-metragem de animação reforça um estudo (de antropologia social e de análise cognitiva) dos humanos ou animalescos enquanto participantes do meio em que estão. Quando “Arca de Noé” junta todos esses seres num novo e transitório habitat, para que assim, com essas características intrínsecas de individualidades subjetivas, possam se adequar desse novo padrão coletivo. A fábula da reconstrução do mundo, pela passagem bíblica de Noé e sua arca de transporte de espécies em casal de macho e fêmea, ganha aqui novos entendimentos sobre outras possibilidades das relações humanas, como a questão LGBTQIAPN+. “E as outras famílias?”, questiona-se.
Inspirado na obra de Vinicius de Moraes, e com uma grande influência da comicidade do Porta dos Fundos, “Arca de Noé” é uma colagem articulada, perspicaz e propositalmente de caos cadenciado. de toda essa coloquialidade existencial, comparativa à moda de uma reconstituição bem mais modernizada ao longo dos anos até o exato momento atual. Há também um querer de ser um espetáculo todo o tempo, se comportar como uma peça de teatro. Sim, as referências pululam quase a totalidade de “Arca de Noé”. Estamos sugestivos a versão brasileira de “Sing”. E/ou à figura de linguagem de “O Rei Leão”. E/ou a “nova política” que traz “A Revolução dos Bichos” e “1984”, de George Orwell. Tudo aqui é uma metáfora e/ou crítica de nossa contemporaneidade, o que dá realismo ao texto, especialmente por criar identificação imediata com o público. O que pode inclusive fazer com que esta obra já nasça datada e de direcionamento local. Esses animais ganham emoções, desejos e uma maior racionalidade dos humanos. Dessa maneira, consegue-se abordar melhor o racismo (que vira “ratismo” e lugar de fala, “furo”), o preconceito e as inúmeras questões tabus que circulam nossa sociedade. É tudo “pau, é pedra, é o fim do caminho”, alusão à música “Águas de Março”, de Tom Jobim, o “protagonista”, junto de Vinicius (“amizade ou amor”?), desta animação.
“Arca de Noé” parece querer ocupar todos os espaços e silêncios da narrativa (talvez ágil demais, com cortes rápidos demais – quase impossível de “respirar” – uma “artilharia” pesada de piadas), com esse humor referencial, coloquial e mais carnavalesco (um que de “Rio”), sendo assim toda essa estrutura como um alívio cômico estendido, com exemplos de “caos por causa de mensagem de voz de cinco minutos”. O filme traz a ideia genérica de Jean-Paul Sartre e sua quote icônica “O Inferno são os outros”. Sim, o outro, nosso próximo, é nosso algoz, nossa pedra no caminho, nosso fundo do poço, sem “consciência alterada” e que sempre usa a expressão “os fins justificam os meios”, entre “jeitinhos” para sobreviver de encontro (e por cima) ao outro. Pois é, quanto mais “Arca de Noé” luta para criar a naturalidade da empatia e da humanização, e conflitar com a caretice, mas o todo esse resultado soa artificial, engessado e forçado. Falta tempo para o público processar tudo isso. Por que “Sing” (ou “The Voice”), “O Rei Leão” e até mesmo “A Festa da Salsicha” tem em comum? O respiro e o momento de acessamos nossas memórias afetivas. Aqui não. A impressão que temos é que “Arca de Noé” quer usar todas as cartas na manga em um intensivo stand up comedy. O espectador sai cansado.
Então, entre excluídos, malditos à la Bukowski, os loucos, renegados, entre a lei dos mais fortes (mas que falam errado) que dominam os espaços dos mais fracos, entre a vida selvagem adulterada e em sobrevivência por 40 dias e 40 noites, entre distopias futuristas evocadas da fantasia do passado, entre o profeta nordestino, entre “missão dada é missão cumprida” (de “Tropa de Elite”), entre a barata de gênero fluido, entre egoístas, utópicos e alienados, entre o Zé “Pequeno” Urso de “Cidade de Deus”, “Arca de Noé” parece faltar ritmo emocional. Talvez por ser inserido coisa demais. Questões demais. Luta demais. A necessidade de ser inclusivo demais. Referências demais. Confesso que poucos filmes “fritaram” meu cérebro e me deixaram com dor de cabeça, com uma sensação de “afogamento”. Este é um deles.