Aqueles Dois
Num espelho para ser capaz de se identificar
Por Pedro Guedes
Mostra Sesc de Cinema 2019
A primeira imagem que aparece em “Aqueles Dois” é a de dois homens de costas entrando em um lago. Como não os vemos de frente, não podemos ver seus jenitais – e isto não faz a menor diferença, já que o que define aqueles dois homens como homens não é o que eles carregam entre as pernas, mas a maneira com que se identificam em relação aos seus gêneros. Como vimos na memorável cena de “Uma Mulher Fantástica” em que a protagonista surgia nua em uma cama, mas com um espelho tampando a genitália (e refletindo, portanto, seu rosto), uma mulher é uma mulher e um homem é um homem – o fato de haver ou não um pênis ali é apenas um detalhe.
Dirigido por Émerson Maranhão de maneira delicada e sensível, “Aqueles Dois” dedica sua primeira metade aos depoimentos não dos protagonistas Kaio Lemos e Caio José, mas das pessoas ao redor destes – e, assim, podemos ouvir com clareza as convicções dos pais de ambos e da namorada de Kaio a respeito da identidade dos dois indivíduos. E o contraste entre alguns dos entrevistados não poderia ser mais revelador: se os pais de um aparecem dizendo o quanto aceitaram a decisão do filho – mesmo sem conseguirem conter um choque inicial diante da revelação –, a mãe de outro surge afirmando que “Deus é quem define se Kaio é homem ou mulher” e que “não cabe ao Homem definir se ele é homem ou mulher”.
O efeito das palavras, claro, deixa uma marca determinante e eterna nos protagonistas, sendo particularmente emocionante que Caio descreva a aceitação de seu pai como a prova definitiva de que ele jamais o abandonaria; ao passo que Kaio, por sua vez, foi capaz de superar o fundamentalismo religioso impregnado na mentalidade de sua mãe, o que também é notável. E, como o próprio Caio diz ao final da projeção, o que importa não é sua vida sexual (se ele é capaz de se relacionar com mulheres ou homens cis gênero), mas o fato de sempre acordar, olhar-se num espelho e ser capaz de se identificar como o que ele é.