Antunes Filho, Do Coração Para o Olho
O Filho do cinema
Por Pedro Sales
Durante o Festival É Tudo Verdade 2023
“Eu nasci cinema, eu vivi cinema”, Antunes Filho (1929-2019)
O diretor de teatro, dramaturgo e cineasta José Alves Antunes Filho, mais conhecido pelos seus dois últimos sobrenomes, é uma das figuras mais ilustres e respeitadas do teatro brasileiro. Apesar de sua carreira ter sido feita sobretudo no tablado, em “Antunes Filho, do Coração Para o Olho“, o diretor Cristiano Burlan explora a relação do personagem-título com o cinema e televisão. Neste aspecto, o filme assume um tom de “feito para quem gosta de cinema”, uma vez que coleciona várias referências ao longo da rodagem. A trajetória cinéfila do diretor de teatro que se autodenominava “um frequentador terrível de cinema” foi determinante para sua formação pessoal e artística. Em uma entrevista, por exemplo, ele relembra a emoção que sentiu com a performance de Marie Falconetti em “O Martírio de Joana D’Arc” (1928), do mestre do cinema transcendental Carl Theodor Dreyer. Será que Antunes também foi às lágrimas, se compadecendo do sofrimento da personagem, como fez Nana, interpretada por Anna Karina em “Viver a Vida” (1962) de Godard?
Além da influência cinematográfica do cineasta dinamarquês e do também nórdico Bergman – a quem ele cita com bastante paixão, ao lembrar de um de seus menos celebrados longas, “Noites de Circo” (1953) –, Antunes Filho medita sobre o papel das artes plásticas, filosofia, poesia e psicologia em sua vida. Sandro Botticelli, Henri Bergson, Fernando Pessoa e Carl Jung, foram pilares para ele se tornar quem foi, cada um ao seu próprio modo e grau. Os relatos compilados com Antunes em diferentes fases da vida, desde os anos 70 no teatro até registros mais próximos de seus dias finais, evidenciam a visão poética que ele adquiriu em relação à vida. Para ele, a poesia está em todo lugar, nos ônibus, nas ruas, basta saber olhar e se abrir para tal. O diretor de teatro divaga pelos caminhos do inconsciente em sua cosmovisão comprometida em transitar pelo tempo entre “o limite da realidade e do sonho”. Esse pensamento sobre real-imaginário se associa também à produção artística dele, uma vez que tentou inserir esses elementos em suas peças. A metalinguagem, para ele, entra nisso ao performar o que chama de “o jogo dentro do jogo”.
Cristiano Burlan organiza esses depoimentos em um díptico, uma parte voltada às influências e a outra à produção artística. Assim, a montagem mescla entrevistas e excertos do teleteatro e de filmes. “Antunes Filho, do Coração Para o Olho” é um documentário bem disruptivo no que tange à abordagem convencional. Não há um narrador que explique a carreira de Antunes Filho, da mesma forma que não se propõe a ser um registro biográfico do diretor, talvez mais autobiográfico. Portanto, para os que não conhecem sua obra, a experiência pode ser um pouco restritiva, tendo em vista que não é introdutória. A montagem, também assinada por Burlan, enfrenta um desafio muito tangível: construir um sentido discursivo nessa alternância de entrevistas e trechos de peças de Antunes. Na maior parte do tempo, é um fluxo de ideias, de divagações que desafiam o próprio espectador a acompanhar a linha de raciocínio e o “fio narrativo”. Entretanto, em um olhar atento, percebe-se que as conjecturas de Antunes Filho se conectam com os excertos escolhidos, os planos são elucidativos em relação à visão que ele possui da arte em si, a qual ele expõe nas entrevistas ou com a voz em off. Ou seja, a costura feita pelo diretor permite que o ritmo não pareça entrecortado com inserções aleatórias.
Fato interessante acerca da vida de Antunes Filho é que mesmo sendo um cinéfilo inveterado e um artista prolífico no teatro, no cinema, dirigiu apenas um longa, “Compasso de Espera” (1973). Antes disso, ele se rendeu à televisão. O modelo industrial de produção e o interesse comercial, contudo, não despertavam o interesse dele. Na TV Cultura, durante os anos 70, realizou diversos teleteatros, adaptando autores como Dostoiévski, em “Crime e Castigo”, e Nelson Rodrigues, em “Vestido de Noiva”. Antunes Filho lembra com carinho desse tempo, em que fazia uma “televisão amadora”, a qual se contrapunha aos interesses comerciais e ficava à mercê de interesses artísticos. Já no cinema, local de seu nascimento, o diretor demonstra em “Compasso” uma visão vinculada ao modernismo. Em primeiro lugar, pelo pioneirismo em escalar um protagonista negro, vivido por Zózimo Bulbul, como membro de classe média. Além de lidar com muita frontalidade diante do racismo, Antunes Filho escancara a hipocrisia da sociedade brasileira e como nem tudo é tão reducionista ao “bom e mau”, por esse motivo, ele cita que ansiava mostrar “as contradições da alma humana”
“Antunes Filho, do Coração Para o Olho” é uma obra que ousa olhar para o outro lado de um dos grandes diretores de teatro do país. O foco não se dá na sua produção teatral ou nos inúmeros prêmios que venceu por direção, como o Prêmio Molière e Prêmio Shell. É, na verdade, um mergulho pessoal, uma análise das inspirações e influências do artista, sob a visão dele próprio. Ele mesmo quem avalia o impacto dessas diferentes áreas na sua própria vida, não há relatos externos. Ao mesmo tempo, a divisão narrativa em dois polos, um pessoal e outro artístico, consegue provar uma interdependência entre os dois e a indissociabilidade entre arte e vida pessoal. Os filmes que ele viu, os livros que leu, os poemas que o encantaram, todos fizeram parte de sua formação. Por isso que quando ele fala dos teleteatros e de “Compasso de Espera” o impacto se torna visível. Em outro ponto, isso também explica o olhar poético de Antunes Filho para com a vida e sua capacidade de autoexpressão. Às vezes, como ele mesmo diz, as pessoas só precisam sentir a poesia, “navegar durante o dia”.