Supermodelo, Superespiã, Superhumana
Por Michel Araújo
No filme “Anna – O Perigo Tem Nome” (2019), a personagem principal homônima (Sasha Luss) é uma jovem russa, na então estabelecida União Soviética no ano de 1985, que após um envolvimento com um gângster que abusa sexualmente da moça, é selecionada por um misterioso representante da KGB (Luke Evans) para se aliar à agência de inteligência e espionagem soviética. Anna aparentemente é escolhida por cumprir os rigorosos pré-requisitos de ser uma filha de um falecido oficial militar e saber jogar xadrez. A representação da agência e do governo são suprahumanos e supraestruturais.
A KGB tudo sabe e pode selecionar seus agentes através da paranormal premonição de que são “escolhidos” e “destinados ao serviço”. Nepotismo psicosensitivo soviético aos moldes da Escola Xavier Para Alunos Superdotados dos quadrinhos da Marvel. Anna desempenha bem sua função de assassina profissional do Estado soviético. A protagonista é colocada à teste em sua primeira missão em que lhe entregam uma arma sem munição, e a jovem liquida com sucesso uma equipe de segurança inteira com as próprias mãos.
Luc Besson dirige mais uma como tantas ficcionalizações da mistificada União Soviética, com o adicional fetichismo sobre a personagem principal. A jovem russa loira de bela aparência e personalidade forte se torna ao longo do filme um prato cheio para o apetite do público tanto masculino como feminino. Anna se disfarça de supermodelo e realiza ensaios sensuais. Anna se envolve sexualmente com sua colega de quarto. Anna se envolve sexualmente com o representante da KGB que a contratou. Anna se envolve sexualmente com o agente da CIA (Lenny Miller) que a coage a matar o chefe da KGB, Vassiliev. As cenas dos encontros sexuais são hiperestilizadas como um pornô softcore.
Em “Anna – O Perigo Tem Nome” temos representações bem estereotípicas da “russividade” da URSS de 1985. Vemos soviéticos jogando xadrez. Soviéticos citando Dostoievski. E Soviéticos matando brutalmente. Uma tríade razoavelmente justa para representação dessa nação no universo cinematográfico das ilusões ocidentais. O agente da CIA interpretado por Lenny Miller vêm trazer à Anna a salvação de sua vida na União Soviética. Após ser violentada por um gângster soviético, após ser transformada em máquina de matar – classe do proletariado bélico – pelo serviço de espionagem soviético, a saída para Anna é trazida pelo amável e democrático ocidente.
Anna é um produto exótico que luta para escapar à qualquer posse ideológica, mas em especial, à do bloco socialista. Se por um lado a fera oxigenada vira as costas para um quadro de Lenin para dar asas à sua tão querida liberdade, por outro esta também nega os afagos sedutores do Tio Sam. Todos querem deter Anna, esse produto de beleza e inteligência eurocêntrica, mas sendo essa entidade quase sobrehumana que é, não é possível que Anna possa pertencer ao mundo dos homens. Ela deve portanto ser sublimada. Os conceitos de beleza, individualidade, liberdade, são todos recobertos por um véu idealista: o título original da obra é tão somente “Anna”, essa coisa, ser, entidade, pessoa, imagem-fetiche dos idólatras que é tão cobiçada/sexualizada/abusada, porém não é merecida.
O diretor de “O Quinto Elemento” (1997), “Angel-A” (2005) e “Lucy” (2014) retoma seu fetichismo idealista sexista se aventurando pelas terras desoladas do drama de guerra fria, onde agora seu modelo feminino tenta escapar das garras dos homens movidos por seus Estados e suas ideologias e busca seu pedestal sublimado. O que se vê é um autor balbuciando seus ícones pessoais em mais uma história de paixão individualista como tantas não apenas em sua filmografia, mas na filmografia contemporânea comercial em geral.
Atuações modestas, personagens rasos ao ponto da monodimensionalidade, estética pasteurizada com a encenação, montagem, fotografia e trilha sonora todos indiscerníveis de qualquer outra grande produção de sua mesma época e um subtexto político-psicológico canastrão. “Anna – O perigo tem nome” não trata de uma superespiã assassina como o nome sugere. Trata então de uma mulher em busca de sua liberação? Tampouco.
Trata-se de um diretor, homem, usando de uma suposta trama de liberação feminina como pretexto para seu próprio gozo com um já bem estabelecido ícone de mulher branca loira que se repetiu por tantas vezes em sua filmografia, requintada, agora, com um desprezo de soslaio a qualquer ideologia que tente abarcá-la. “Essa mulher não pertence ao homem do leste nem do oeste” – afirma o diretor com sua obra – “ela pertence a mim”.