Anhell69
Cinema Trans
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
Em Medellín, cidade colombiana manchada historicamente pelo legado sangrento do narcotraficante Pablo Escobar, o diretor Theo Montoya e seus amigos vivem uma realidade diferente, mas que lida com os mesmos fantasmas. A cena queer da cidade está sempre ativa durante a noite. As festas alucinantes com música eletrônica alta, iluminadas por um neon estroboscópico descontrolado, são, dessa forma, um refúgio para a juventude. Este é o espaço que possuem para serem eles mesmos, sem julgamentos, amarras ou limites. “Anhell69”, portanto, é um filme completamente vinculado à juventude LGBTQIA+ colombiana, questionando os padrões morais, o sexo, a religiosidade, anjos e inferno. O cineasta estrutura a obra como documentário, ao recuperar entrevistas e testes de elenco, realizados em 2017, para o longa que inicialmente seria uma ficção. Apesar da tendência documental, refletida no uso da narração, dos offs e da carga poética e pessoal de Montoya, o filme ainda se apresenta momentaneamente como ficção.
“Eu entendi que ‘Anhell69’ não era apenas um filme de ficção. ‘Anhell69’ teria que ser um filme sem fronteiras, sem gênero, um filme trans”, é com essa epígrafe que o diretor Theo Montoya reconhece – e explica para o público – a essência de seu longa, que rompe barreiras de gênero em um aspecto de identidade e também de abordagem estético-fílmica. A origem ficcional que permeia o filme tem, por si só, um argumento arrojado e bastante marginal. Quando Medellín se torna uma nação abandonada, cuja figura paterna era o antigo traficante, as mortes são cada vez mais constantes, até que não haja mais espaço para os corpos nos cemitérios. Assim, os espíritos vagueiam livremente pela noite. Os jovens, então, passam a coabitar os espaços dos fantasmas, envolvendo-se sexualmente com eles, tornando-se o infame grupo dos “espectrofílicos”. Este filme, no entanto, nunca aconteceu. Ainda assim, Montoya provoca a imaginação do espectador no que poderia ter sido, com algumas cenas que acompanham a narração dele da trama inicial, quase sempre filmadas com câmera na mão, dando a sensação de onírico. Os fantasmas de olhos vermelhos e silhuetas esguias remetem fisicamente aos seres do metafísico “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” (2010), mas a potência dos corpos e do tesão pendem para outro lado.
“Anhell69“, contudo, não se restringe à ideia inicial do roteiro, mas estende-se ao próprio processo de produção. As entrevistas do casting, antes citadas, com os amigos, são o principal pilar para estabelecer a identidade da juventude colombiana. A montagem posiciona as respostas e entrevistados tematicamente, o que contribui, por exemplo, para a homogeneização do discurso: quais tipos de pessoas eles gostam, como se dá a presença paterna. Neste último tópico, uns não conheceram os pais, outros o perderam ainda na infância. Constata-se, portanto, que é uma “geração criada por mulheres solteiras”, ou viúvas. A frontalidade das entrevistas, aliada aos pontuais comentários do realizador, promovem um choque ainda maior. Em relação à inconsequência da juventude e as aspirações futuras, eles afirmam sem remorso algum a importância do agora e a descrença na longevidade. Um desses é Camilo Najar, o escolhido para ser o protagonista. O próprio título do filme, inclusive, surge baseado no nome de usuário de Camilo nas redes sociais.
Theo Montoya constrói o retrato de uma juventude apaixonada, que sonha e deseja conquistar o seu lugar. Nenhum sonho é grande demais para os jovens de Medellín. Os palcos não são o suficiente quando seu sonho é oferecer um banquete orgiástico como a “puta de Hollywood”. De certa forma, os espectrofílicos do roteiro inicial metaforicamente representam esse grupo marginalizado representado pelo cineasta, sobretudo por seus impulsos sexuais e sua moral divergente do que é apontado como “bons costumes”. Ou seja, os queers sofrem com o mesmo olhar julgador, com tentativas de exorcismo nas ruas ou com a excomunhão na igreja, mas isso não os impede de sonhar. Embora estes sonhos estejam sempre associados a viver a vida intensamente, muitas dessas histórias são interrompidas de forma fugaz, é uma juventude perdida no embate com a finitude da vida. A morte, assim, é determinante para a obra. Não é por mero capricho criativo do diretor que o carro fúnebre, iluminado por um neon vermelho, passeia pelas ruas de Medellín, afinal esse fantasma ainda paira por lá.
Poucos longas evocam a liberdade dos corpos – de ser quem é – e a dura realidade da morte precoce como “Anhell69“. O que Montoya alcança é um filme-memória no que tange ao compartilhamento dos últimos momentos e ao caráter de confissão das dores advindas da perda, e um filme-queer pela representatividade LGBTQIA+ nas ruas de Medellín. Na realidade, é até inócuo ceder à tentação crítica de encapsular essa obra como isso ou aquilo, uma vez que o filme se delineia por muitos caminhos, muitas abordagens. Ele transita por vários espaços, é, de fato, um cinema trans. Por outro lado, o que pode ser afirmado categoricamente é a potência discursiva na estreia de Montoya. De maneira subversiva, ele contrapõe o discurso religioso à aceitação de ser quem é, os planos com a imagem de Jesus comprovam isso, ou a panorâmica que mostra fotos da crisma e logo depois a Britney Spears. Além de seu posicionamento contundente frente a questão LGBTQIA+, o longa conta com uma amplitude dramática bastante tangível, vai do riso à emoção, do céu ao inferno no limiar tênue que divide “ángel” de “anhell”.