Mostra Um Curta Por Dia 2025

Amizade

Projeção ideológica

Por Vitor Velloso

Mostra de São Paulo 2024

Amizade

Cao Guimarães é um diretor de obras importantes para o cinema brasileiro contemporâneo, seja para o debate sociológico, como “O Homem das Multidões” (2013), dirigido em parceria com Marcelo Gomes, ou “Andarilho” (2007), que permite reflexões por meio de uma representação limitada a detalhes e versões de um mundo particular. Em “Espera” (2018), Cao foi capaz de sustentar uma obra sobre angústia, ansiedade e como a espera é capaz de definir todo um contexto específico. Em seu novo filme, “Amizade”, o cineasta decide trabalhar com uma temática simples e direta, característica de sua cinematografia, mas dentro de uma ampla gama de questões, dispositivos e articulações formais que permitem ao espectador relacionar o contexto político brasileiro com as formas de representação ali expostas, seja com registros mais recentes, seja com materiais de arquivo de outros momentos.

O interessante aqui são as formas de explicitar os dispositivos envolvidos na estruturação do projeto, especialmente as falas em off, nas quais o cineasta revela determinadas inspirações, motivações e processos inconsistentes que o levaram a registrar certos momentos. Por outro lado, Cao decide articular algumas reflexões acerca da realidade política e social brasileira contemporânea, especialmente sobre o último governo e os momentos da Covid-19. Nestes recortes, algumas de suas falas parecem excessivamente fatalistas, na mesma linha de alguns comentários vistos à época, que, apesar de não estarem absolutamente equivocados, revelam um pavor de cunho ideológico e, consequentemente, de falsa consciência. Isso não apenas se torna cansativo pela repetição exaustiva, oriunda de uma suposta reflexão concreta da realidade nacional, mas também acaba apenas reproduzindo um discurso midiático “progressista”, porém liberal. Ou seja, tudo flerta mais com uma crítica moral do que propriamente com uma reflexão sobre as diferentes formas de interpretação da materialidade. É verdade que essa nunca foi a principal característica do cinema de Cao, por mais que sua lente seja capaz de trabalhar a particularidade como totalidade. No entanto, em “Amizade”, esse discurso se torna cansativo, pouco efetivo e muitas vezes afetado pela dualidade de reflexões superficiais sobre o verdadeiro impacto que as políticas do último governo tiveram na realidade social, econômica e política brasileira. Um fatalismo provocado pela burguesia e perpetrado pela classe média.

Dessa forma, o filme se fragiliza por essas digressões, supostamente baseadas na realidade nacional, ainda que possua belíssimos momentos imagéticos, especialmente quando abraça uma abstração ou estabelece uma relação contextual entre imagem e texto. Isso torna a imagem uma ilustração de registros, que apenas reforçam a base fixa do projeto: a amizade em si. Não por acaso, os melhores momentos do filme surgem dessa liberdade estrutural, sem a necessidade de uma reflexão direta sobre a política eleitoral brasileira. Quanto mais Cao fala sobre cinema e amizade, mais o longa ganha força, progredindo de forma fluida e sem os entraves desses tópicos — e não apenas políticos — que quase sempre soam como obstáculos para o desenvolvimento da obra. Um exemplo disso são os momentos em que o acaso do registro é entregue à vontade de Deus, ou termos próximos, indo contra a materialidade dessas memórias ou mesmo do próprio fazer cinematográfico.

“Amizade” é um projeto singular de um cineasta que se destacou pela capacidade sintética de construir uma obra, normalmente experimental, sobre temas sensíveis e complexos, ainda que dentro de um recorte rigoroso, explicitando a verve pesquisadora e poética de Cao. Trata-se de um diretor inquieto com seus objetos e diferentes estéticas, o que o leva a oscilar em suas investidas cinematográficas. Assim, o visível flerte dos longas-metragens do diretor com videoinstalações cumpre um papel importante na cinematografia brasileira contemporânea, que, nos últimos anos, tem se inclinado a representações que seguem uma espécie de estética do registro. Essa abordagem recusa a contemplação do cinema narrativo clássico e compreende as novas formas de registro e exibição cinematográfica como uma vertente sólida de manifestação, expressão e capacidade reflexiva, seja sobre o cinema, seja sobre a sociedade. E talvez esse seja o grande problema do filme: ele não encontra um caminho orgânico para sustentar suas discussões. Por essa razão, tenta apoiar-se na voz off do cineasta para trabalhar a realidade, seus contextos e registros, buscando relações com o cenário político brasileiro. Contudo, sua artificialidade nesses momentos não apaga os méritos das belas sequências espalhadas ao longo do projeto, ainda que essas acabem sendo mais espaçadas devido à falta de uma estrutura direta, apesar de particularmente efetiva em diversas situações.

3 Nota do Crítico 5 1

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