Amanhã
O que esses meninos fazem da vida?
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra CineOP 2023
As primeiras imagens de “Amanhã”, de Marcos Pimentel, são registros de crianças brincando, se divertindo, em meio a um cenário que revela algumas mazelas do subdesenvolvimento e já expõe algumas das questões sociais que serão debatidas ao longo do filme. O que se inicia como uma espécie de revisão do registro, torna-se a ponte entre as chagas de dois tempos distintos, o presente e a infância.
O primeiro esforço poderia ser elaborar algum tipo de distinção entre os contextos da sociedade brasileira no registro inicial e o atual, 2002-2022, mas o próprio filme se estrutura de uma forma politicamente firme, posicionando-se contra o último governo e opinando sobre características da sociedade brasileira, como a afirmação de que a “polarização” que vivemos atualmente, não é de agora, sempre foi assim.
Porém, conforme o longa se desenvolve, não há exatamente um motivo para se debruçar sobre a questão, particularmente bem resolvida na obra, mas sim notar como o sorriso e choro se misturam, transformando esse recorte do documentário em uma representação brasileira tão precisa quanto dolorida. Não por acaso, a violência é uma das grandes questões centrais do filme, pois a multiplicidade de suas faces é assustadora, desde o Estado, o poder paralelo, até violências sociais que foram normalizadas pelo cotidiano, como o ato de caminhar apenas até metade de uma região, a fim de evitar o lado da classe menos favorecida.
Neste sentido, “Amanhã” apresenta esse Brasil, fragmentado, feio, tosco e agressivo que é um rolo compressor da vida dos personagens centrais da obra. Quando uma criança se diverte com a parede de sua casa que dá choque, notamos o sadismo envolvido na possível perspectiva que poderíamos projetar para a sociedade brasileira. E para não ter que lidar com essa realidade, além de remoção forçada, o Estado adota uma medida similar ao que fizeram no Rio: o tapa-favela (parte do público carioca chama desta forma), uma tentativa desesperada de tentar remover a localidade de uma paisagem.
Durante este momento da projeção, um acontecimento modifica gravemente o documentário, Cristian, um dos personagens centrais, sai da cadeia e passa a integrar diretamente essa história que Marcos Pimentel procura traçar entre os diferentes contextos brasileiros de 2002-2022, deixando claro que sua intenção é compreender onde está a criança que brinca com Cristian e Júlia nas primeiras imagens do longa. Não apenas porque a criança não fazia parte daquela realidade, mas para entender onde essa divisão da sociedade impacta nesse pequeno recorte proposto. E neste sentido, o diretor compreende a importância de aproximar o espectador do rosto de cada protagonista, preenchendo a tela com suas expressões e reações ao verem os antigos registros.
Por mais que os sorrisos sejam constantes, o close não deixa escapar uma certa melancolia e o espectador se pergunta de onde vem o sentimento, desse passado carregado de alguma inocência e trágico socialmente, ou do presente e os caminhos que percorreram. Desta forma, “Amanhã” vai se articulando em uma carga tão emocional quanto política, especialmente quando lembram da violência do segurança do shopping ou mesmo na “semana da minha vida” por ter comido McDonalds com a família.
Já nos minutos finais, o filme passa a caminhar por duas direções distintas: 1) Uma perspectiva particular do cineasta sobre a política e as mudanças que ocorreram no Brasil, o que permitiu que sua equipe pudesse ser metade da quebrada e metade não. 2) A covardia de Zé Thomas, a criança da filmagem, em não comparecer diante de Cristian e Júlia, alegando que tudo mudou e Brasil está muito dividido. E este seguimento que se debruça no fantasma de um registro tão querido, demonstra toda a mesquinhez de uma classe social que, guiada por um representante ideológico, se distanciou da realidade e se isolou em uma fortaleza.
“Amanhã” poderia ser definido na frase de Júlia: “O filme é sobre a sociedade, não sobre a gente”, pois a estrutura que Marcos Pimentel monta é tão precisa no recorte, que a particularidade nos leva a debater o todo. Uma sociedade que é polarizada, em tantas vias distintas, que passa a revelar suas chagas como um processo patológico que tem na consciência de classe sua maior representação.
Se Godard foi um canalha por não receber a Agnés Varda no fim de “Visages, Villages” (2017), Zé Thomas é apenas mais um covarde dessa realidade doentia que fomos submetidos.