Almas Gêmeas
Representação sem complexidade do imoral
Por Pedro Sales
Com seis filmes eleitos entre os melhores do ano pela tradicional revista francesa Cahiers Du Cinéma durante as décadas de 80 e 90, o diretor André Téchiné dá continuidade à prolífica carreira com o novo longa “Almas Gêmeas“, que esteve entre os selecionados do Festival Varilux 2023. O nome pode dar indícios de se tratar de um romance, o que não é o caso. Normalmente, opto por não revelar os “segredos” de um filme. Nessa ocasião, entretanto, violo minha própria regra para deixar clara a existência de temática incestuosa na obra ao leitor que pretende assistir ao longa. É um tabu claro que pode influenciar se o espectador quer ou não ver o filme. Portanto, deixo o aviso àqueles sensíveis ao tema. Agora, voltemos ao filme.
A obra de Téchiné, apesar de soar mórbida pelo choque natural da temática, jamais consegue explorar as complexidades do tabu, ao mesmo tempo em que a delicadeza da linguagem cinematográfica também parece endossar as ações dos personagens. Não bastando essa estrutura incapaz de problematizar as dúvidas dos irmãos diante do incesto, o ritmo é extremamente sôfrego em uma montagem com claras dificuldades. David (Benjamin Voisin) é um tenente do Exército Francês no Mali. Após seu comboio ter sido atacado, ele retorna para o país natal, acamado, queimado e com amnésia. Cabe à irmã Jeanne (Noémie Merlant) cuidar dele. Nesse processo, o militar passa por uma jornada de redescoberta de si mesmo e de estigmas do passado, aproximando-se cada vez mais da irmã.
“Almas Gêmeas“, então, lida com um problema muito comum na representação de tabus no cinema: perder a mão. Aqui, no entanto, parece que Téchiné sequer tenta polir o texto e a direção para fazer do incesto um elemento provocativo e complexo. Por meio da linguagem assumidamente clássica de festival, com muito destaque aos closes e impulsionado por uma trilha sonora de música erudita, ele trata como mais um tema qualquer, sem reconhecer o peso narrativo. A iluminação com luz de velas ou a câmera subjetiva com a visão de David para a irmã durante a festa, por outro lado, parecem romantizar essa relação conturbada e problemática. Por mais que apenas as insinuações já pudessem causar repulsa em grande parte do público, a situação piora com diálogos aparentemente saídos de filmes pornográficos, como “sua mão de fada me deixou excitado”, enquanto Jeanne cuida das queimaduras do irmão.
Além disso, a direção desperdiça o potencial dramático. Em um método binário, a relação entre David e Jeanne é marcada por um tom passivo-agressivo, calcado no cuidado maternalista e nos acessos de raiva para lutarem contra o sentimento. Portanto, Voisin e Merlant nunca estão no melhor que poderiam, apenas reforçam e repetem o simplismo adotado pela obra. Outro problema é a montagem do longa, que não apresenta uma progressão concisa das ações. O uso dos fade-outs, por exemplo, evidenciam a dificuldade de encadear as cenas, assim como os planos contemplativos com a voz em off soam deslocados do resto da unidade estilística clássica da obra. Irônico ou não, uma das melhores cenas do filme passa diretamente pela montagem. No encerramento, Téchiné demonstra um lampejo criativo que faz o público se questionar e pensar que poderia ter sido bem melhor. O cineasta consegue verbalizar com imagens essa relação, a conexão entre irmãos que ultrapassa(va) os limites morais, faz com que eles sejam vistos como um só.
“Almas Gêmeas” falha em muitos momentos, não só pelo desperdício narrativo com a temática polêmica, mas também pela construção dramática simplificada. Vale ressaltar que o fato de um filme abordar um tema divisivo não necessariamente faz ele ser ruim, o excelente “Lavoura Arcaica”, por exemplo, lida com o mesmo assunto de uma maneira extremamente superior e mais expressiva. A predominância da simplificação das relações dramáticas entre os irmãos, em atuações que variam apenas em dois polos, o passivo e agressivo, só é superada quando Téchiné explora a amnésia retrógrada – isto é, que não se lembra do passado – do personagem para estabelecer um determinismo para o tabu. Ainda sim, algumas tentativas de criar risco soam apenas enfadonhas, como a cena da moto, que beira o risível. Portanto, trata-se de uma obra que lida duplamente com problemas: uma representação preguiçosa e por vezes romântica do incesto, assim como uma condução com problemas de ritmo e no desenvolvimento dos personagens.