All Of Us Are Dead
O grau zero dos zumbis
Por João Lanari Bo
“All Of Us Are Dead”: com um título desses, restam poucas opções para o espectador entediado que explora na madrugada a (quase) infinita lista de séries e filmes da Netflix – a morte é certa, não vai sobrar ninguém para contar o que aconteceu, só resta a adesão e maratonar. Lançada em janeiro de 2022, a série é centrada em um grupo de estudantes do ensino médio na cidade fictícia de Hyosan, na Coreia do Sul, e sua luta para sobreviver em meio a um surto de zumbis (foi filmada na Sunghee Girls’ High School, em Andong). Claro, o lançamento global ocorreu em plena pandemia causada pelo coronavírus, a COVID, apostando na ansiedade abissal experimentada pela audiência. K-horror mirou no marketing, com certeza.
Passado o susto, a distância temporal permite outras leituras desses 12 episódios de uma hora em média de duração, que vão além do pânico, real e imediato, que o coronavírus despertou. Os zumbis, como é sabido, conseguiram um feito extraordinário, entraram sem dó nem piedade no imaginário audiovisual e constituem um indiscutível subgênero do cinema de horror. Afinal, o que são os zumbis? Seriam sintomas sociais, ou psicossociais? E os zumbis coreanos, como entram nessa equação? Se os zumbis lograram um subgênero cinematográfico, lograram também um subgênero acadêmico – é infindável a quantidade de estudos sobre o tema. Com razão, pois como entender o gosto do público de narrativas pontuadas por criaturas bizarras, mortos-vivos, sem consciência ou qualquer outra aptidão humana, dotadas de um visceral apetite, condenadas a um movimento frenético e aleatório? Quem criou essa gente, Deus?
Existem, é certo, diferenças entre os filmes de zumbis, enredos e situações dramáticas, por exemplo. “All Of Us Are Dead” investiu no contexto colegial e suas patologias, como bullying, romance adolescente, rebeldia de alunos diante de autoridades escolares. Diversos sub-plots enchem a história, afinal são 12 episódios! – embora nem chegue perto do imbatível “Walking Dead” e suas intermináveis temporadas. O bullying, aliás, é o pecado original do drama coreano: o filho do professor de química foi alvo rotineiro de violência e intimidação, até o momento que resolveu se matar. O pai, perplexo face ao descaso dos diretores da escola, partiu para vingança “produzindo” um vírus em laboratório – que transformava as pessoas em zumbis, se propagando por mordidas e contatos sanguíneos.
E o que dizem os acadêmicos? Para começar, filmes de zumbis são ilustrações de dinâmicas sociológicas relacionadas à identidade, comportamento coletivo, doença, contágio e os privilégios advindos da desigualdade social. Confrontados com um perigo coletivo dessa monta, os indivíduos se veem em uma esfera absolutamente desconhecida, cujo primeiro sinal é o derretimento do tecido social. Os zumbis, bem ou mal, são seres, pelo menos diegeticamente, ou seja, quanto à maneira como são apresentados dentro do mundo ficcional da série. Logo a análise passa necessariamente de como os filmes de zumbis expressam ansiedades culturais sobre a individualidade, perda de autonomia e ameaças de desindividualização.
Como informa a Wikipedia, desindividualização é um fenômeno psicológico em que indivíduos em um grupo perdem sua identidade pessoal e autoconsciência, podendo levar a comportamentos que normalmente não adotariam. É frequentemente associada a situações de anonimato, como multidões ou festas à fantasia, onde as pessoas se sentem menos responsáveis por suas ações. Há um contínuo entre aqueles excêntricos corpos alucinados e situações rotineiras do convívio social, digamos, mediano. Sem falar em um aspecto crucial – as doenças infecciosas, como esse dado social que está entranhado na história da ocupação do planeta pela humanidade. Em “All Of Us Are Dead”, como é frequente no subgênero, a questão principal é como o zumbi se correlaciona com surtos de doenças reais, como se processam os aspectos sociais da transmissão de doenças infecciosas e como podemos formular hipóteses sobre a sociologia das pandemias.
E a Coreia do Sul, o que tem a ver com os zumbis? Ocupando a maior parte da península coreana – ao lado da Coreia do Norte, a península forma uma espécie de museu a céu aberto da Guerra Fria – o país teve um percurso traumático no século 20. A cruel colonização japonesa do início do século até 1945, a quase apocalíptica Guerra da Coreia, entre 1950 e 53, seguida de quase quarenta anos de ditadura militar — deixaram profundas cicatrizes psicológicas na psique nacional.
Obviamente, não é pouca coisa. Vem aí a segunda temporada, anunciaram.