Afeto
Arquitetura do corpo
Por Michel Araújo
Durante o Festival Ecrã 2019
Não refletindo acerca da estrutura da cidade, parece comum a disposição dos elementos e a representação da sociedade tal qual ela está. Ver uma arquitetura verticalizada em sucessivos falos – os quais só se fazem necessários pois a maior parte da área urbana é ocupada pela malha rodoviária – parece normal. Ver monolitos de emparedamento e uma dilatação espacial que só sufocam e restringem uma possível relação mais dialógica do povo nas ruas, parece normal.
E caminhar pelo centro do Rio de Janeiro e ver dezenas de cabeças de apenas homens fixadas em bustos de cobre, muito embora a história da cidade também tenha sido feita por mulheres, também parece normal.
O curta-metragem estreante das diretoras Gabriela Meirelles e Taina Medina, “Afeto” (2018), vem questionar o status quo dessa arquitetura diante do corpo; mais especificamente, do corpo feminino.
Mantendo uma relação muito estreita entre a cidade, a estética do filme, e o corpo, o curta busca uma sensorialidade explosiva e colérica para afrontar os estados de placidez que permitem esses padrões se tornarem corriqueiros.
A montagem veloz busca impactar o espectador com olhares incomuns sobre o espaço urbano, junto com uma narração também acelerada e enraivecida, que apreende quase que instintivamente as imagens.
Há, por exemplo, uma rápida sucessão de planos de bustos de figuras históricas masculinas e em cada um deles a locutora pronuncia em voz quase de deboche “cabeça de homem, cabeça de homem, cabeça de homem”.
O título da obra carrega uma ambiguidade curiosa. Numa primeira leitura mais denotativa podemos entender esse “afeto” como a maneira como a cidade age sobre o corpo feminino – restringindo, movendo, omitindo, assediando -, e explicita essa primeira relação sensorial com o espaço.
Já num segundo momento, pensando na figura feminina que aparece em diversos momentos emergindo dos escombros, rompendo uma espécie de placenta de plástico e de fato nascendo dessa cidade, figura essa intitulada como “feto” nos créditos, podemos pensar o a-feto como a negação da vida, do nascimento, do florescimento desse corpo no espaço em que se situa.
Conjugando, pois, essas duas assertivas, a maneira como o espaço dessa cidade afeta o corpo feminino é negando sua emergência, sua necessidade de “nascer”.
“Afeto”, que passou pela Mostra do Filme Livre, e chega agora ao Festival Ecra, busca uma provocação física, partindo de certo imediatismo, o qual é compreensível, porém acaba por não permitir uma elucidação mais sólida do discurso dentro do próprio filme.
Logicamente, debatendo os temas do filme a posteriori é possível esclarecer todos os tópicos levantados, mas se fosse delegado apenas às imagens a incumbência de discursar e pontuar as falhas estruturais da conjuntura urbana que potencializam a opressão ao corpo da mulher, diversas dúvidas permaneceriam.
A proposta provocativa é cumprida com êxito; o filme inquieta e levanta seus questionamentos. Já na proposta comunicativa, não se sustenta tanto, visto que não responde suas próprias questões com muita clareza. Para bem ou para mal, “Afeto” é um filme para se assistir com o corpo.