Adeus, Capitão
Documento da barbárie
Por Pedro Mesquita
Durante o É Tudo Verdade 2022
Existem filmes que reivindicam para si nada mais que a humilde missão de servir como documento de alguma coisa que aconteceu no mundo real. Ora, é claro que essa descrição nos remete aos documentários. Mas, mais especificamente, falamos daqueles que almejam recuperar a aparência de pessoas e eventos que não se encontram mais nos dias de hoje, mas que podem ser acessados através do filme. Lembremos de André Bazin, que, por meio de uma analogia muito apropriada, associou a prática fotográfica à prática do embalsamamento: “a morte não é senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida”.
Vemos essa vontade colocada em ação em “Adeus, Capitão”. O título já sugere as intenções do filme: ao longo das próximas quase três horas de duração, assistiremos a uma elegia cinematográfica na qual a vida da personagem principal será recuperada através de imagens.
Quem será, então, essa personagem? O “capitão” ao qual o título alude é Krohokrenhum, líder do povo indígena Gavião, habitante do sul do Pará. O diretor do filme, o franco-brasileiro Vincent Carelli — que já acumula ampla filmografia sobre a temática indígena —, rememora no filme a sua relação de longa data com Krohokrenhum, boa parte da qual foi registrada por ele em suas visitas à comunidade do capitão. A linha do tempo não é pequena; vemos imagens de diversos períodos distintos: o contato inicial de Carelli com os Gavião (no qual percebe-se, inclusive, a atuação do projeto “Vídeo nas Aldeias”, idealizado pelo cineasta); o reencontro com o Krohokrenhum, em 2010, após muitos anos de separação; e, por fim, o período que engloba a morte do capitão e a adequação da aldeia à sua ausência.
A estrutura intermitente faz lembrar a obra-prima de Eduardo Coutinho, “Cabra Marcado Para Morrer” (1986), pois o que “Adeus, Capitão” nos dá a ver é justamente a resistência de uma comunidade em meio às vicissitudes das diferentes épocas do Brasil. Percorrendo um vasto caminho, o filme vai do período da Ditadura Militar até os dias de hoje, retratando a complexa relação entre os povos indígenas e os governos das diferentes épocas. Acompanhamos a atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) até a sua investigação por meio de uma CPI e eventual dissolução; a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), substituindo a SPI… no entanto, apesar dessas mudanças, o tratamento continua problemático: em ambos, por exemplo, percebemos a ocorrência de escravização da população indígena.
Não é apenas por causa disso que o longa de Carelli nos remete a Eduardo Coutinho: o modo como o próprio diretor se insere na narrativa espelha a abordagem de Coutinho (não apenas em “Cabra Marcado Para Morrer”, mas também em vários outros filmes seus): “Adeus, Capitão” se desenrola a partir da sua perspectiva. Carelli não faz questão de esconder a sua presença; é dele a voz que narra o filme (sempre relatando as coisas do seu ponto de vista pessoal) e é ele quem interage com os Gavião, fazendo-o, muitas vezes, dentro do quadro. Essa abordagem reforça o aspecto antropológico da empreitada — eis um pesquisador, um homem “da cidade”, adentrando um espaço no qual ele é um estranho.
A escolha pelo método do “cinema-verdade” se mostra acertada: o modo clássico de representação documental não garantiria aos sujeitos filmados a devida agência sobre como apresentar-se diante da câmera; que informações sobre si revelar etc. A representação “fly on the wall” do cinema-direto tampouco seria frutífera, pois eliminaria do filme a ótima presença de Carelli, cujos laços com Krohokrenhum e o resto da comunidade ganham uma bela construção ao longo do filme.
A presença do próprio diretor em cena, tendo vivido todos aqueles momentos junto ao capitão e seu povo, talvez ajude a explicar a longa duração do filme (os 175 minutos fazem de “Adeus, Capitão” o mais longo filme entre os brasileiros na mostra competitiva do festival É Tudo Verdade neste ano): dos laços afetivos criados, vem a predisposição de manter no filme o máximo de elementos possível.
Trata-se de uma experiência cansativa, sem dúvida, mas dizê-lo assim tão diretamente seria ignorar o ponto com o qual começamos o texto: este é menos um filme destinado à fruição descompromissada que um documento — extenso, pormenorizado — de seu objeto de estudo.
Fruto de um longo trabalho de pesquisa, produto de um espírito diligente, “Adeus, Capitão” é um documento da cultura e da barbárie acontecidas em território brasileiro — se Walter Benjamin disse que “nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”, então é essa mesma preocupação que verificamos nos olhos do capitão e de outros Gavião quando lamentam a introdução de “futebol, bailes e bebedeiras” no seu mundo.