Mostra Um Curta Por Dia A Repescagem 2025 Junho

A vitalidade do Cinema ucraniano em tempo de guerra

Sorbonne Ucrania

A vitalidade do Cinema ucraniano em tempo de guerra

O ressurgimento do Cinema ucraniano e a Retrospectiva “Geração Ucrânia: um cinema em guerra”, realizada no Centre Pompidou e na Universidade Sorbonne-Nouvelle, em Paris

Por João Lanari Bo

Como é possível um país em plena guerra contra um vizinho muito mais poderoso encontrar forças para produzir filmes? A Ucrânia, contra todas previsões, encarou o desafio e foi à luta, literalmente. Fazer cinema passou a ser mais um ato de resistência, em todos os sentidos. No texto que segue (especial para o Vertentes), Kristian Feigelson, sociólogo e professor da Sorbonne, examina esse momento, comentando retrospectiva do cinema ucraniano realizada em Paris e elaborando sobre o passado recente dessa produção que – de novo, literalmente – não quer se calar.

Geração Ucrânia: um cinema em guerra

Por Kristian Feigelson (especial para o Vertentes)

No final de novembro de 2024, foi organizado no Centre Pompidou e na Universidade Sorbonne-Nouvelle, em Paris, um ciclo de filmes: Geração Ucrânia: um cinema em guerra. A TV Arte apoiou doze equipes de filmagem ucranianas que contaram a vida em um país em guerra. Paralelamente, um livro [1] trata em detalhes do legado visual de uma cultura cinematográfica que hoje resiste. Como e por que fazer cinema nessas condições?

20 Days in Mariupol

Filmar a guerra

Ao longo deste ciclo, foi projetado primeiramente na Sorbonne Nouvelle o filme 20 dias em Mariupol (2023, Oscar de melhor documentário em 2024), um documentário de Mstyslav Chernov testemunhando o início da invasão russa e a destruição total de uma cidade de 430.000 habitantes. Em 2022, naquele porto central e estratégico do Mar de Azov, o exército russo, sob pretexto de eliminar o nazismo na Ucrânia, mataram em três meses mais de 35.000 civis, contribuindo para 100.000 feridos, esvaziando a cidade de todos os seus habitantes. Mariupol foi totalmente riscada do mapa, à semelhança de Grozny durante a guerra na Chechênia há vinte e cinco anos. De fato, como mostrava o documentário filmado ao vivo, os russos tiveram sucesso bem maior nesta cidade multicultural, forte de uma antiga comunidade greco-turca, do que os nazistas que, em outubro de 1941, executaram 10.000 judeus. Desde então, e também graças ao levantamento dessas imagens, um relatório detalhado do Human Rights Watch concluía a necessidade de processar por crimes de guerra todos os responsáveis do comando russo, incluindo Vladimir Putin, pelas violações cometidas.

Outro documentário igualmente impressionante, Interceptados de Oksana Karpovych (2024), filmado dois anos depois, recorreu ao balanço dessa terrível guerra, com imagens de cidades e vilarejos ucranianos abandonados e destruídos, onde a trilha sonora reproduzia as violentas conversas interceptadas de soldados russos, vangloriando seus saques e extorsões (em russo, com gíria obscena e vulgar). Todos esses filmes testemunhavam o fracasso russo em querer submeter os ucranianos. Estes documentários também mostravam a intensidade da guerra contra um adversário bem superior em número. Por exemplo, Inside Zaporijjia (2024), de Pavlo Cherepine, descreve tanto uma das maiores usinas nucleares da Europa, que foi atacada e subsequentemente ocupada pelo exército russo, quanto a impotência da AIEA, a autoridade reguladora de Viena, que veio ao local avaliar os riscos de ameaça nuclear.

Todos esses cineastas ucranianos participam, em graus diversos, de uma nova forma de resistência cultural, produzindo e transmitindo imagens em tempos de guerra, que contradizem aquelas veiculadas pelos meios de comunicação da propaganda russa, atacaram a cidade impiedosamente. Às vezes, filmes como 20 dias em Mariupol estabelecem paralelos para enfatizar a decalagem dos discursos. Os realizadores também atraem nossa admiração, enfrentando dificuldades cotidianas para filmar e, posteriormente, indo ao front para combater. Alguns perderam a vida desde fevereiro de 2022. Por sua vez, suas câmeras se tornaram armas e ferramentas essenciais para testemunhar uma guerra terrível às portas da Europa.

Qual cinema ucraniano?

No passado, havia na França uma tendência de abordar a Ucrânia no campo dos estudos eslavos sob o prisma de seu único vizinho, a Rússia, por meio de uma literatura ucraniana pouco conhecida e minoritária, sem uma real reavaliação da sua cultura visual através do seu cinema. Em uma obra recente, Ciné-Ukraine: histoire(s) d’indépendance, Anthelme Vidaud, que foi assessor audiovisual do Institut Français de Kiev e diretor de programação do festival de Odessa de 2015 a 2020, busca corrigir essa lacuna traçando uma história cinematográfica que vai bem além da guerra. As questões levantadas pelo livro são numerosas e esclarecedoras. A independência adquirida pela Ucrânia em 1991, com a queda da URSS, não significou, contudo, independência de seu cinema, como o subtítulo do livro poderia sugerir. Na época da URSS, o cinema ucraniano, sob a tutela dos estúdios soviéticos, emergiu graças à figura de alguns cineastas lendários. O mais citado costuma ser Dziga Vertov, fundador do cinema de agitprop em 1918, que, ao servir o regime soviético, refugiou-se em Odessa em 1927 para rodar O Homem com a câmera (1929). Ou ainda Aleksander Dovjienko, que de forma metafórica, com A Terra (1930), legitimou a coletivização das campanhas na URSS, ao mesmo tempo em que exaltava a terra ucraniana. Filmado pouco antes da terrível fome de 1932-1933 que causou mais de 3,5 milhões de vítimas na Ucrânia, esse filme aponta o kulak (o camponês privado) e o pope (o sacerdote) como inimigos de classe a serem abatidos [2].

Essas figuras tutelares deram lugar, no período do degelo de 1960, a uma nova geração de cineastas lendários, incluindo Yuri Ilyenko e Kira Muratova, ambos formados na Escola de Cinema em Moscou (VGIK), que contribuíram para a escola poética de Kiev. Yuri Ilyenko, como diretor de fotografia, participou do filme adaptado do livroa do escritor ucraniano Mykhailo Kotsiubynsky, Os Cavalos de Fogo, com direção de Serguei Paradjanov (1964), posteriormente condenado, em 1973, a quatro anos de prisão por parasitismo e homossexualidade [3]. A cinematografia na Ucrânia busca suas fontes na literatura e na história ucraniana, bem além da independência.

A partir dos anos 1980, um longo período de letargia dominou o cinema ucraniano. Por falta de recursos em um Estado ao mesmo tempo desprovido de dinheiro e marcado por crises políticas e uma instabilidade permanente, as artes cinematográficas não eram mais uma prioridade. Muitos profissionais abandonaram o setor ou se voltaram para a televisão (lembrando que, antes de sua eleição, o presidente Volodymyr Zelensky foi uma estrela da comédia ucraniana). Alguns partiram para Moscou, onde o cinema então renascia financiado pelo mundo próspero dos negócios e com a ajuda de alguns oligarcas [4]. Outros, como Sergei Loznitsa, estabeleceram-se na Europa Ocidental.

Na Ucrânia, lentamente, entre 2011 e 2021, começaram a ser filmados de dois a cinco longas-metragens por ano, uma média de cerca de 30 longas em dez anos, contra quase 150 por ano na Rússia. O cinema ucraniano – assim como em grande parte da Europa Central, onde os estúdios foram transformados e os mercados inundados por blockbusters americanos – atravessou uma fase difícil de adaptação estrutural, procurando principalmente coproduções no Ocidente para sobreviver. Uma geração inteira de profissionais foi sacrificada. Hoje, na Ucrânia, há 580 telas de cinema, ou seja, uma décima parte do que há na França, e um filme ucraniano de sucesso conta apenas com 20.000 espectadores.”

Os cineastas são reduzidos a exibir seus filmes em festivais internacionais, por falta de estruturas adequadas. Alguns conseguiram encontrar produtores na Europa, como A Tribo (2014), de Myroslav Slaboshpytskyi, uma produção ucraniano-holandesa apresentada em Cannes e distribuída em 26 países.

Ressurgimento e diversidade

Como explica Anthelme Vidaud, o ressurgimento do cinema ucraniano na última década está ligado a vários fatores. Primeiramente, surge uma nova implicação do Estado, pouco antes da revolução de Maidan em 2014, com a criação em 2011 de uma agência cinematográfica inspirada no modelo do CNC francês, que, graças a financiamentos mais elevados e transparentes, revitaliza uma produção enfraquecida. Depois, aparece uma profunda vontade de retomar a produção de seus próprios relatos audiovisuais, rompendo com o cinema até então colonizado pela Rússia que impunha sua língua em detrimento do ucraniano, ainda negado.

Porém, as obras analisadas no livro de Vidaud testemunham, sobretudo, a energia recuperada de uma sociedade multicultural: essas obras, de modo sempre complexo e frágil, vão além do simples quadro de um Estado-nação forçado à guerra. E, antes da invasão russa, alguns filmes parecem ressoar em relação a uma história comum com um mundo russo estranhamente fantasmático, ao mesmo tempo próximo e distante. Anthelme Vidaud fala da emergência de um “cinema patriótico”, mas observa que a anexação da Crimeia, seguida da guerra no Donbass, permite questionar essa história comum que está no coração de um documentário-ficção de guerra como Donbass, de Sergei Loznitsa (2018, prêmio de melhor direção na seleção Un certain regard em Cannes).

Ao revisitar toda a produção cinematográfica dessa jovem geração, os dois últimos capítulos de Ciné-Ukraine: histoire(s) d’indépendance analisam uma dezena de filmes emblemáticos da última década, sem esquecer o cinema de animação, bastante ativo. Acompanhado de um livreto de fotos que testemunha a diversidade estética desse cinema, o livro dá voz aos seus realizadores. Por exemplo, Na Terra da Crimeia (2019), de Nariman Aliev, inspirado pelo cinema turco e iraniano, aborda indiretamente a tragédia dos tártaros, massivamente deportados em 1944 por Stalin da Crimeia. Alguns filmes foram exibidos na França, como O Juramento de Pamfir (2022), de Dmytro Soukholytkyi-Sobtchouk, inspirado em Paradjanov para evocar as tradições dos Cárpatos. Outros, como We Will Not Fade Away (2023), de Alisa Kovalenko, focalizam retratos de jovens que fogem da guerra no Donbass e buscam explorar novas possibilidades, em busca de paz, na base do Annapurna, no Himalaia. Aqui, trata-se de algo próximo do que se pode chamar um “cinema de empatia”. O destaque do livro é dado a um cinema de autores independentes, em detrimento de um cinema popular, hoje ausente para o grande público ou muito disperso. Mas, como epílogo nostálgico, o autor retorna a Casa do Cinema em Kiev: “É um cinema antigo, que não é modernizado nem conectado, e lá nos sentimos em casa.”

[1] Ciné-Ukraine: história(s) de independência, de Anthelme Vidaud, Éditions WARM, 2023, 317 p.

[2] Veja, no entanto, a obra pioneira de Lubomir Hosejko, Histoire du cinéma ukrainien, edições A Die, 2001.

[3] Cf. Kristian Feigelson (diretor), Cinéma et stalinisme, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 2005.

[4] Cf. Eugénie Zvonkine, Kira Mouratova : un cinéma de la dissonance, Lausanne, L’Âge d’Homme, 2012.

[5] Cf. Kristian Feigelson, “Enjeux et perspectives du cinéma russe “, in Claude Forest (dir.), L’Internationalisation des productions, Lille, Presses Universitaires du Septentrion, 2017, pp. 159-274.

Kristian Feigelson é sociólogo, professor universitário na Sorbonne Nouvelle. Autor de, entre outros, La Fabrique Filmique: métiers et professions. Paris, Armand Colin, 2011.

Tradução de João Lanari Bo.

Apoie o Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta