A Vilã das Nove
A catarse de uma vilã
Por Júlia Wehmuth Roth
Assistido durante o Festival do Rio 2024
A arte imita a vida e nunca é precisa pois é feita de perspectivas e memórias, mas qual seria o resultado de um filme ao se apoiar nessa imprecisão? A “Vilã das Nove” do diretor Teodoro Poppovic utiliza essa proposta para criar um longa-metragem expondo questões relacionadas ao amadurecimento emocional, ao impacto que o abandono tem na vida de uma pessoa, à importância da responsabilidade afetiva e à dualidade da condição humana. O filme apoia-se em uma abordagem de comédia e comoção emocional, ao mesmo tempo que trabalha com memórias do nosso subconsciente coletivo, por meio de manifestações dramáticas, cenográficas e movimentação de câmera, características das novelas que todos os brasileiros já assistiram em algum momento da vida.
Nesse sentido, “Vilã das Nove” transita em dois campos: sendo o primeiro uma narrativa verossímil usada para contar um pouco do passado do ponto de vista de Eugenia (Protagonista, interpretada por Karine Teles), e dar lugar à trama no tempo presente no qual ela assumiu o nome de Roberta. Enquanto o segundo campo é o da “ficção dentro da ficção”, onde se dá uma apropriação satirizada do estilo de nossas novelas nacionais. Em que é apresentada uma Eugenia vilã e caricata, usada para contar as memórias da filha, Débora, em relação aos acontecimentos de sua vida, na mesma medida que explora suas emoções no tempo presente, brincando com o uso de sarcasmo e muito exagero das situações.
Há algo que chama muita atenção quando pensamos nos cenários, é que neles existem objetos como fotos, instrumentos musicais, livros, plantas e esculturas, representando a personalidade de cada personagem, mas sem chegar a possuir marcas de presença para torná-las mais reais. Ou seja, tudo é perfeitamente posicionado, limpo e organizado, passando a impressão de um ambiente imaculado, enquanto as paletas de cores repetidas entre vários espaços permanecem conectadas para criar uma unidade propositalmente não natural. Essa lógica mira na ideia de que filmes frequentemente possuem uma “estética”, pega uma coisa “de mentira”, explora elementos de sua plasticidade para deixá-la mais interessante, e sai da atitude mais óbvia e esgotada, de criar uma divisória prática entre o “real” e a “novela”. Em vez disso, potencializa o que é falso ao ponto de transbordar para o campo da narrativa principal do filme, até atingir uma metalinguagem do audiovisual falando de audiovisual.
Em “Vilã das Nove”, isso tudo também ocorre nos diálogos, que têm um teor plástico, lembrando frases prontas, ouvidas no dia-a-dia e em filmes. Assim como as personagens que se amparam em estereótipos como: a filha adolescente e rebelde, a irmã excluída e vingativa, a má-mãe, neurótica e negligenciadora, sem de fato “cair” neles, chegando até a “quebrá-las” em momentos estratégicos, tanto para efeito de humor, quanto tensão. Dessa forma, aqui as personagens são complexas e bem direcionadas, entre figuras femininas de grande potência, tendo em vista que a única “coisa” fraca (mais resultado de roteiro do que de atuação, pois se perdeu no caminho da trama), foi o destino da personagem “Paloma”, responsável também por representar a Eugenia na camada de novela do filme, porque o abandono do relacionamento das personagens (Eugenia da vida real e Paloma) é abrupto, e junto com ele, o desenvolvimento de Paloma também fica de lado para dar foco a Eugenia da novela. E mesmo o tema sendo a “Vilã”, nada impedia um desfecho mais elaborado da “Atriz”, em nome de intensificar a profundidade da obra.
Mas considerando a conexão com a representatividade LGBTQIAPN+ presente nesse aspecto do filme, sem uma conclusão adequada, as escolhas feitas para moldar as interações das duas personagens se tornam um ato vazio, como se só estivessem lá só para “cumprir tabela”. Ainda assim, tirando esse detalhe, os outros aspectos de “Vilã das Nove” relacionados ao desenvolvimento do roteiro e dos personagens, em especial da Eugenia, foram bem elaborados. Um exemplo disso é a forma como a personalidade de Eugenia se modifica ao assistir a si mesma na perspectiva de Débora, adotando traços da vilã. Nesse momento existe uma delicadeza na narrativa de não absolver a protagonista de seus erros, mesmo mostrando seus motivos para cometê-los. Na realidade, ela chega a resistir à ideia de mudar ou aceitá-los, e nesses momentos a personalidade da “Eugenia real” fica familiar à “Eugenia ficcional.” Tornando-a ironicamente mais apropriada para gerar uma catarse na plateia.