A Última Rainha
Um drama argelino com tom shakespeariano
Por Paula Hong
Uma das beldades do cinema é a possibilidade de criar histórias e realidades que não têm compromisso restrito com a realidade. Narrativas que se encontram na zona vaga de classificação entre a especulação e uma reconstrução fidedigna do real, ou uma mistura harmoniosa entre as duas, carregam potência criativa para brincar com fatos históricos — ou que pensam sobre eles a partir de outra perspectiva. É nesse sentido que “A Última Rainha” retraça uma trama que beira a uma tragédia shakespeariana, bebendo da rica história da Argélia para construir a imagem da rainha Zaphira (Adila Bendimerad), cuja existência é até hoje questionada.
O filme contém componentes básicos de uma obra épica: é dividida em três atos, através dos quais se explora os caminhos convergentes de uma rainha glamourosa, dois guerreiros, alianças, traições e um desfecho trágico: tudo pelo país de independência ameaçada. A dupla Damien Ounouri e Adila Bendimerad usa o pano de fundo da invasão espanhola na Argélia no século XVI para montar um belo drama que se destaca não somente pelas atuações e pelo bordado narrativo bem feito, mas também pelo cuidado com as vestimentas exuberantes e coloridas, pela valorização da arquitetura e pelos enquadramentos que ora têm uma consistência mais clássica, ora se arriscam na inconvencionalidade.
Um dos outros aspectos mais surpreendentes em “A Última Rainha” é a fluidez com que Ounouri e Bendimerad brincam com a noção de sonho e realidade dentro da própria diegese do filme. As trucagens da edição e montagem são tão bem executadas que, mesmo com pequenas pistas, não é muito deduzível que certas cenas não se tratam do tempo presente narrativo, mas sim de um sonho. E o sonho, no filme, funciona como uma premonição, um presságio para pontos de virada que ajudam a prosseguir com a história, além de simbolizar o ocorrido sem necessariamente recorrer à alternativa de mostrá-lo como “de fato” ocorreu. Trato aqui da cena em que o rei Salim Toumi (Tahar Zaoui) é morto, suscitando comoção e evacuação de todos do palácio. A morte culmina na quebra instantânea da breve aliança formada com o pirata Aroudj Barbarossa (Dali Benssalah), responsável pela libertação de Argel dos invasores espanhóis. Apesar de tudo, Zaphira fica; assim, torna-se rainha. Mas as responsabilidades vão se exponencializar de modo que a vida de seu filho com Salim, o príncipe Yahia (Yanis Aouine) é o centro de tudo para ela. Perder o menino significa perder o que lhe resta do rei, o último resquício do amor e da família que tivera.
Embora Zaphira dilate o tempo de espera quando se agarra aos quarenta dias de luto, não há como evitar a orquestragem que os homens à sua volta, conforme seus interesses, fazem para delinear o destino que julgam ser o ideal para a rainha e para o país. Se Aroudj mata Salim para tornar-se rei, a traição prova-se de difícil sucesso quando Zaphira recusa as propostas de alianças que lhe são oferecidas. Nem o próprio irmão é capaz de impedi-la de rejeitar as predestinações impostas pela tradição sedimentadas na religião e nos costumes. Nada e ninguém é páreo para Zaphira, de modo que suas decisões — ora impulsivas, ora elaboradas — culminam ou em morte, ou em traições; resultados clássicos de narrativa desenhada para testar a moral de personagens e que, no filme, funciona. Ela é revertida por estratégias frias e ele, se antes era perigoso, amolece diante das recusas de Zaphira.
A proposta de casamento que Aroudj faz para uma nova forma de aliança é revelada como estratégia para chegar à posição de rei e, portanto, controle do país. Com o apoio de sua família, Zaphira elabora a sua. No entanto, é palpável que o duelo estratégico entre os dois de despistar, no caso da rainha, e de aproximar, no caso do pirata, pareia no limiar entre verdadeiro interessante romântico e o blefe que garanta o sucesso de seus respectivos planos. Eles são dois polos políticos que visam, dentro de um mesmo sistema de governança, a manutenção de seus reinados: para Zaphira, a continuação, através dela e do príncipe, do legado do marido falecido; para Aroudj, a oportunidade de tornar-se rei pela primeira vez.
Já no fim do terceiro ato, num dos pontos mais altos do filme, essa dança se estende para a noite de núpcias. Zaphira, já sem nada a se agarrar depois que o filho é morto, sem prioridades para enumerar, cede à sua proposta de aliança e se casa com o pirata. Contudo, ela carrega a última carta sob a manga e, numa coreografia que representa aquele limiar, na qual um tenta dominar o outro e que pouco se diferencia de uma luta, ela sai por cima: em um gesto que pode ser lido como sacrifício heroico pelo país, a rainha se recusa a ficar para testemunhar — a ascensão e depois queda, como aprendemos — o reinado do homem que arruinou a sua vida.
Com tudo isso, “A Última Rainha” se prova um filme que, embora seja fiel ao formato clássico de três atos e que cujos elementos narrativos o aproxima de uma clássica peça shakespeariana, o seu destaque vai pelo recorte histórico — entre deslizes, acertos e inconsistências de arco de personagem — por fazer dele um alicerce para lançar luz à existência questionada de Zaphira. No fim, o que sabemos é que vale a pena especular em torno do que foi, do que é, do que será e do que poderia ter sido: aqui reside no cinema a capacidade de navegar pelas temporalidades históricas, mesmo que o uso de suas ferramentas nem sempre funcionem.