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A Última Gravação

A fé sem repouso: Os muitos Sergios Brittos do teatro nacional

Por Roberta Mathias

Durante o Festival do Rio 2019

A Última Gravação

O documentário “A Última Gravação” de Isabel Cavalcanti e Celia Freitas, que passou na Mostra Itinenários Únicos do Festival do Rio é uma mescla entre a  aclamada peça “A Última Gravação de Krapp”  de Sammuel Beckett e do próprio cotidiano do ator.  Pela peça, que encenou entre os 86 e 88 anos, Sérgio Britto ganhou os principais prêmios do teatro nacional, dentre eles o Prêmio Shell de melhor ator.

O nome de Britto por si só brilha. Integrante do Teatro de Arena e criador do Teatro dos Sete foi fruto de uma geração fecunda para os palcos. A convivência com Fernanda Montenegro ,Fernando Torres e Natália Thimberg não foi acidental. Entre as coxias e os palcos esse grupo , do qual fizeram parte outros grandes atores, reconstruiu o teatro nacional.  E, não é exagero. Incansavelmente, todos trabalham ou trabalharam até os últimos dias de vida com uma fé renovada em uma arte que ,digamos bem a verdade, não é lá muito valorizada no país. Sabemos das dificuldades de se montar uma peça e de se permanecer em cartaz com obras fora do circuito de comédia. Por isso, o encontro entre Isabel e Britto e dos dois com o texto de Beckett só pode ser considerado um bom encontro.

Para o filósofo Espinoza, os bons encontros são aqueles que elevam a potência do ser. Que nos permitem tirar do afeto (e da afetação, enquanto sentido) o melhor de nós mesmos. Provavelmente, é por isso que a potência transbordou nas telas e nos palcos. Esses encontros deram também origem a um livro organizado por Paulo Britto, sobrinho do ator, que revela suas lembranças. No filme observamos também a construção do livro pelas mãos de Sergio e Paulo. São muitos Sergios apresentados na tela: o Sergio ator, o Sergio que interpreta Krapp, o Sergio boêmio, o Sergio escritor e , enfim, o Sergio que vê a morte mais perto. Mesmo que não a tema, uma coisa o incomoda profundamente: a distância dos palcos, que será inevitável.

É uma construção difícil essa a de muitos Sergios e as diretoras conseguem, também com o auxilio da fotografia- que o tempo todo acompanha o clima teatral- trazer toda a crueza de um corpo que ,por mais que não queira, sabe que se encontra mais frágil. A opção por mostrar o cotidiano desde que levanta e toma seus remédios com a acompanhante Chica- outra importante personagem do filme, toma seu banho , sobe e desce as escadas de sua casa em Santa Teresa faz com que nos aproximemos desses muitos Sergios. Em realidade, ele é somente um. Aquele que renova constantemente a sua fé no teatro.

Cavalcanti, que também dirigiu a peça, opta por fazer com que Sergio se embeba se suas próprias lembranças, que as misture aos do velho Krapp , criando um ser novo. Tudo o que Britto precisava no final de sua vida: sentir que o teatro e que a capacidade de compor não haviam se esvaído com o tempo. “O tempo é o tempo”, diz o ator. Mas Cronos se faz mais cruel para aqueles que desistem antes. Sergio não desistiu até o último minuto de lucidez. O filme também não. Já quando Sérgio não consegue mais lembrar os textos e entender a ordem cronológica das coisas, Isabel convoca o sentimento do ator.  Para usar uma outra analogia da mitologia grega, o ator não vacila tal qual Orfeu ao buscar sua Eurídice no Inferno.  A Eurídice de Sergio é o teatro, isso fica transparente no filme. O inferno, a própria perda de lembranças e da memória.

A memória é essencial para qualquer humano, mas mesmo com todo o comprometimento que sua doença causava Sergio insistia em ser ator. Ele ainda procurava o sentido do texto, o sentido da vida. Há muitas cenas de dança no filme, algumas para se preparar corporalmente para peças, algumas apenas charmes de Sergio, mas, uma em particular é fascinante. Sergio interpreta Solitude na voz de Billie Holiday.  Esse Sergio, que se gabava de ainda flertar, entendia também que ,em alguns momentos, seu único companheiro – por opção própria- era o palco.

Talvez pela intensidade de seu encontro com Sergio ,apesar do pouco tempo em que efetivamente se conheciam- se quisermos jogar com o tempo do calendário, que creio não caber aqui- Cavalcanti consegue trazer esses múltiplos Sergios em um único. O filme é uma bela homenagem à memória e às lembranças de Britto, mas é também uma construção das diretoras que não perdem a voz ou a dinâmica diante de um personagem que se impõe o tempo todo. Apesar de deixar que Sergio imprima seu próprio ritmo ao filme e aos ensaios, as diretoras não abrem mão de dirigir- um filme que provoca muitas sensações. Tal qual a peça, “A Última Gravação” nos deixa com a sensação de que “a vida é estranha”, como diz Sergio, mas precisa ser vivida.

4 Nota do Crítico 5 1
  • Que profunda e bela critica ao filme, Roberta Mathias!
    Obrigada pelo olhar tão sensível, que alarga as fronteiras do documentário! Viva Sergio Britto. Viva o cinema!
    Isabel Cavalcanti

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