Curta Paranagua 2024

A Transformação de Canuto

Lenda encarnada

Por Pedro Sales

Durante o Festival de Brasília 2023

A Transformação de Canuto

Lenda, segundo o dicionário Michaelis, é uma “narrativa fantasiosa ou crendice do imaginário popular sobre seres encantados ou maravilhosos da natureza”. Mas o que leva alguém a acreditar em fantasia senão a tradição? Em “A Transformação de Canuto“, último longa exibido na Mostra Competitiva Nacional do 56º Festival de Brasília, a lenda vem à vida por meio do cinema. Na comunidade Mbyá-Guarani, mais especificamente o Tekoá Tamanduá, na fronteira entre Brasil e Argentina, os diretores Ariel Ortega Ernesto de Carvalho se embrenham em uma docuficção que registra o processo de dramatização da vida e morte de Canuto, um morador da região durante os anos 70. Ao mesmo tempo em que o mito é imortalizado nas telas, a própria comunidade e as transformações sofridas também são, ficam eternizados aqueles que se foram e que surgiram depois.

O longa se inicia com uma gravação antiga, de 2010. Ariel conversa com o avô Dionísio sobre como a comunidade cresceu e se desenvolveu. Junto a essas imagens, resgates pessoais de memória, há a narração do realizador. Ele conta a Ernesto, com quem divide a direção, que teve um sonho. Ariel via a estrada onde a filmagem foi feita e, durante a noite, era “como se a aldeia estivesse invisível”. O tom poético do relato para o amigo antecipa os rumos que o filme segue: é uma obra de resgate histórico e reafirmação da população indígena que se um dia esteve invisível, mesmo em pesadelo, já não está mais. No primeiro momento, eles se organizam para contar a história de Canuto, um morador da comunidade que se tornou lenda local por supostamente ter se transformado em onça. O processo de produção dessa dramatização lendária também implica de certa forma no segundo aspecto da obra: a representação dos Mbyá-Guarani.

Portanto, “A Transmutação de Canuto” separa o ficcional do documental. O espectador acompanha ativamente as discussões sobre a produção do filme. Como contar a tragédia de Canuto? Entrevistas ou reencenações? Apesar de os diretores terem opiniões diferentes, há um pouco dos dois. É quando Ariel estabelece o caráter colaborativo como essência do seu cinema que temos os melhores momentos do longa. A comunidade opina, um diz que a versão da morte de Canuto, informação que sabemos desde o início, deve ser mitológica pelas mãos de Tupã, e os moradores da aldeia também acompanham as atualizações do projeto, assistindo às filmagens. As crianças fazem testes para interpretar Canuto, imitam onças, ataques e olham fixamente para a câmera. É inegável que em muitos sentidos o longa remete ao trabalho de Apichatpong Weerasethakul, como os limites tênues entre a ficção e o documental, as atuações naturalistas, a câmera estática e a temporalidade dos planos, por exemplo. Mas a participação coletiva também se associa à obra do tailandês, em especial a “Objeto Misterioso ao Meio Dia”, que usa do mesmo recurso para construir a história.

Gradualmente, em uma progressão assumidamente dilatada, o público passa a conhecer mais da história de Canuto, seus modos na floresta, os dias sem tomar banho para ficar com cheiro de bicho. Há uma dicotomia, então, entre o que é dito nas entrevistas e o que é reencenado. O pequeno Álvaro Benitez dá vez a Thiny Ramirez que interpreta a figura já adulta, com família, filhos e um ciúme doentio. A alternância ficcção-documentário não chega a ser cansativa e sim complementar porque novas camadas vão sendo adicionadas a Canuto a partir dos relatos, como a presença do homem branco. É nesse momento que Ariel e Ernesto apostam em uma representação da comunidade. Antes já tinham falado sobre as estruturas, a escola “ruína do futuro” que não ficou pronta, mas só a partir daí que o filme demonstra um discurso de resistência por meio da oralidade dos mais velhos que associam a ruína selvagem do homem com a exploração da natureza. Para a pergunta: “Por que você quer a terra se não vai plantar?”, um dos anciões categoricamente responde que a terra é deles, os Mbyá já estavam aqui. Apesar da clara importância da reafirmação, a obra parte para dois polos temáticos distintos, o que enfraquece um pouco a proposta inicial.

A Transformação de Canuto” é uma docuficção que explora a ancestralidade dos povos indígenas e a importância do registro como ferramenta de valorização da tradição. Aqui, no caso, a lenda de um homem que de tão selvagem tornou-se onça é preservada e imortalizada pelo cinema. Os diretores Ariel e Ernesto propõem um caráter colaborativo na produção e estes são momentos extremamente sensíveis, pois reafirmam a coletividade do audiovisual e dos próprios Mbyá Guarani. Existe graciosidade e humor nessa proposta, como Ariel pedindo uma atuação selvagem para Thiny. Posteriormente até Ariel interpreta Canuto, e os limites de ficção-documental, antes evidentes, tornam-se obscuros. O longa também se dedica a planos contemplativos que destacam a natureza. A fotografia explora paisagens, trovões e até uma casa brilhando, deixando de ser invisível. Tal abordagem estética provoca um clima de suspensão no espectador. Por fim, ao mesclar o dramático-ficcional com os relatos indígenas, há um olhar antropológico para a diferente realidade, amplificando vozes há muito caladas, mas que têm muito a dizer, desde suas lendas e tradições até suas reivindicações mais básicas.

3 Nota do Crítico 5 1

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