A Sociedade da Neve
A carne para continuar a sentir a vida em clima de morte
Por Fabricio Duque
Festival do Rio 2023
Patologicamente, nós humanos somos seres facilmente adaptáveis a novos meios e dificuldades. E está mais que provado, por inúmeros estudos neurocientistas que em pouco tempo nossas sinapses reconstroem novos e urgentes costumes, especialmente em momentos extremos de perigos e mais ainda quando toda essa experiência é vivenciada em grupo, no coletivo, como a caída de um avião em lugares inóspitos. Assim, a consequência é a reconstrução do atual estágio-meio desses sobreviventes em uma nova sociedade, possível e com que se pode ter ao redor, em que valores são ressignificados e moralidades, desconstruídas, por conta da necessidade de se manterem vivos, que parecem se libertar sem hipocrisias e máscaras imagéticas das amarras e obrigações sociais. Essa é o mote e a mensagem do longa-metragem “A Sociedade da Neve”, que chega agora à plataforma de streaming Netflix.
Dirigido por Juan Antonio Bayona (que assina J.A. Bayona), “A Sociedade da Neve” traz a predileção do diretor espanhol por temas catastróficos e trágicos. Em 2012, realizou “O Impossível” com Naomi Watts; em 2018, a continuação de “Jurassic World: Reino Ameaçado”. O filme em questão aqui baseia-se no livro homônimo de 2008, escrito por Pablo Vierci, sobre os sobreviventes que sofreram o acidente de avião da Força Aérea Uruguaia e ficaram 72 dias “engolidos” pela Cordilheira dos Andes, entre Argentina e Chile. Não sei se vocês se atentaram, mas há o filme lançado em 1976, “Sobreviventes dos Andes”, do diretor cubano René Cardona, ficção sobre o livro “Survive”, do jornalista norteamericano Clay Drewry Blair Jr., publicado em 1973. E há também outro livro “Os Sobreviventes – A Tragédia dos Andes”, escrito pelo romancista britânico Piers Paul Read. Sim, eventos fatídicos costumam despertar interesse, talvez pela própria característica selvagem do ser humano de ser fascinado pela vida em tempos de morte. A história do Titanic está aí para provar esse ponto.
Podemos então dizer que “A Sociedade da Neve”, exibido no Festival do Rio 2023, é um melodrama. Uma versão modernizada, quando se utiliza a narrativa padronizada e vigente de nosso agora, muito por querer ser o novo sucesso hype, como “Barbie” e “Saltburn”, por exemplo, escondendo-se dentro da narrativa já estruturada de filmes com “cara de (e feitos para/por) Netflix”, que por sua vez se caracteriza pela condução de um roteiro mais didático (o xixi e o cinto, por exemplo) e por uma mise-en-scène, facilitando o olhar e a absorção do espectador, tudo pela fotografia estonteante; pela narração mais dramatizada ao sentimental (de viés pessoal, a fim de criar intimidade e empatia – mas bem piegas, em muitos momentos); pela edição de efeito em situações de riscos extremos; pela inserção de flashbacks; e principalmente pelo tom da narrativa, mais urgente, mais afoito e com menos tempo de respiro (e olha que o filme, com os créditos, têm duas horas e vinte e quatro), como por exemplo, escolher camadas críticas para se trabalhar: a equipe “alienada politicamente” (que só querem se divertir e “pegar mulheres gostosas”) de jogadores de rúgbi versus o protesto revolucionário dos estudantes nas ruas. “O que acontece quando o mundo te abandona? A resposta está na montanha”, ouve-se nos primeiros minutos de duração de “A Sociedade da Neve”.
Mas o que faz “A Sociedade da Neve” ser tão polêmico e fascinante ao mesmo tempo, visto que, como já foi dito, é um filme convencional que existe (e se desenvolve) dentro da própria zona de conforto da tipicidade já aceita de filmes comerciais. Pois é, a grande questão é o canibalismo. Uns comerem os outros (“os corpos se precisar” – “não há outro caminho”, alguém argumenta) para sobreviver e se manterem vivos, “tragédia para alguns, milagre para outros”. Assim, o filme caminha quase que completamente por essa seara de identificação religiosa (visto que o canibalismo está na bíblia – “Não comerás carne humana”), pautando-se nos valores morais do catolicismo. De segunda chance no reino dos céus. De expurgação dos pecados. Ainda que no fundo, bem no fundo, queira a ideia metafórica de exílio imposto. Uns julgam e se abraçam com suas orações (porque a carne representa nossas fraquezas). Outros, “mais famintos”, já partem para a “ceia”. Eles preservam também a “esperança” (“os mais velhos têm a responsabilidade de cuidar dos mais novos”). Ao exceder a discussão ética sobre se o grupo deve ou não se alimentar de carne humana para não morrer, “A Sociedade da Neve” aumenta a modulação da mensagem para mais ingênua, superficial, conservadora, carola e sentimentalista, fazendo “das tripas coração” para arrancar o máximo de emoção do público. Não, não é assim que pensa um filme, Juan Antonio Bayona.
“A Sociedade da Neve” também flerta com o sobrenatural. Muito sutilmente permite que nós infiramos uma tentativa à moda do filme “Premonição”, quando um dos passageiros sente o perigo iminente. Isso nos acorda, porque realmente começamos a assistir ao filme de outra forma, como se só sobreviverá quem “a morte não quer”. Há aqui vários sinais de revolta da própria natureza para “expulsá-los” dali. Sim, mas o mais importante neste filme é a vivência da tragédia e não seus detalhes. Eu contei. O avião cai com 14 minutos e a queda é apenas uma cena de passagem. Depois, pululam-se gatilhos comuns, como as constantes pausas dramáticas (especialmente na narração que potencializa o efeito e reações histéricas e o choro sem lágrima na “emboscada da noite”). E mais referências religiosas: a Ave Maria no rádio. “Deixar de sentir é um alívio, um instante de calma”, sobre a morte.
Tudo aqui é um exercício de acessar a emoção do espectador. A câmera, por uma estética e metafísica fotografia, em forma de surto para traduzir a notícia que as buscas acabaram. E/ou a montanha que brinca com eles adicionando mais desafios a la “Jogos Vorazes”. E/ou as alucinações (verídicas por causa de outros inúmeros estudos que dizem que em grandes quantidades, a carne humana modifica o cérebro de quem come). E/ou a música final de efeito que rasga a cena; e/ou as imagens em PB para fazer referência às fotos que um dos sobreviventes tirava. E/ou ainda mais um que de Terrence Malick no prólogo. Pois é, “A Sociedade da Neve” é isso tudo. Uma tentativa que almeja manipular as emoções mais sentimentais de quem assiste. Será que perdi a pureza?