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A Prática

A linha média da infelicidade

Por João Lanari Bo

Festival de San Sebastian 2023

A Prática

A Prática”, de 2023, é o sexto ou sétimo longa-metragem do argentino Martin Rejtman, em mais de 30 anos de carreira. Há nove anos rodou o filme anterior, “Dois disparos”. Uma carreira, portanto, bissexta, como se dizia – o ano bissexto acontece a cada quatro anos e tem duração de 366 dias, diferentemente dos demais que têm 365 dias. Para ele

Escrever um roteiro já é um processo longo e árduo para mim. Não tenho nada na cabeça a priori: surgem as cenas, os personagens, as situações. Demora para trabalhar assim e sempre tenho a dúvida: “Isso vai acabar em roteiro, vou encontrar o enredo do filme ou vai ficar nada?”

Essa, digamos, sedimentação, pode durar anos e anos. Às vezes, algumas ideias ficam de fora de um filme e são aproveitadas em outro. O problema é que demora também para configurar um tratamento, uma sinopse – ou seja, fica mais difícil financiar os filmes, mesmo para um diretor veterano com circulação em festivais internacionais de prestígio. Os letreiros iniciais de “A Prática” arrolam um sem número de fundos e produtores, argentinos naturalmente, mas também franceses, portugueses, holandeses. A montagem da produção sugere a lentidão do processo – ao mesmo tempo que o texto, a história e os personagens vão decantando, encontrando um lugar.

O surpreendente disso tudo é que o resultado é enxuto, minimalista. Tudo que entra em cena, corpos e objetos, parecem imantados de uma consistência única, própria. Os planos são estáticos, frios. Diálogos e interações são em consequência curtos, secos, mas efetivos. Transições entre cenas podem ser abruptas, mas são rapidamente assimiláveis. Não há momentos de eloquência ou transbordamento dramático: tudo é contido, restrito, até os espaços se conformam com esse minimalismo. Repetir situações e lugares é um dos dispositivos para conduzir a estratégia de contenção, e tem de ser dosada, obviamente, com inteligência.

Gustavo (Esteban Bigliardi) é um professor de ioga argentino de meia idade que mora em Santiago, Chile. Acaba de separar-se de Vanessa (Manuela Oyarzún), sua ex-esposa, que também ensina ioga. Os dois se submetem a sessões de terapia para aparar as arestas: ele saiu de casa, alojou-se temporariamente no apartamento do cunhado. Ioga está ligada a práticas meditativas e costuma ser associada a exercícios de postura. Mas a vida de Gustavo está à beira do caos: Vanessa ficou com a casa e logo desfez-se dos móveis. Ela era sócia do estúdio onde ambos praticavam e ensinavam. Ele, atordoado e absorto – e sempre contido – depara-se com uma sequência de pequenos incidentes. Como um biombo que cai em cima de uma aluna alemã, que fica com amnésia. Não se lembra das senhas do cartão e telefone. Mas não consegue esconder uma leve queda pelo professor.

A vida segue e Gustavo, acompanhado pelos que estão à sua volta, administra cada incidente com a resignação que se espera de um praticante de meditação. A direção de Rejtman reduz os movimentos corporais a movimentos (quase) mecânicos, mas expressivos, pontuados de reviravoltas irônicas e absurdas. A ênfase nos momentos cômicos em geral precede um momento de melancolia. Uma dessas passagens é quando Gustavo, um experiente yogue, cruza as pernas em lótus e fratura o menisco. É algo inconcebível, mas ele aceita – como aceita que sua mãe venha de Buenos Aires dar conselhos e interferir em suas decisões.

A Prática” evolve nesse clima de entrelaçamentos e afastamentos, entre Gustavo e seu entorno, e entre os que gravitam no entorno. É como se de Gustavo se sucedessem situações narrativas, que logo em seguida geram novas situações narrativas a partir de personagens ligados a ele. Quando Gustavo parece perdido nesse labirinto, o filme dá meia volta e conecta os fios soltos. É a velha física em cena: para cada ação há uma reação, e vice-versa. Gustavo cai em um bueiro em seu primeiro encontro com uma ex-aluna (fato que aconteceu ao próprio Martin Rejtman), enquanto Vanessa cai da moto de um ex-aluno voltando de um retiro.

Todos se acomodam, de um jeito ou de outro, na linha média da infelicidade. Todos com seus interesses e suas idiossincrasias. O diretor bissexto argentino – que também é escritor, de contos – refinou uma linguagem que lembra os ambientes de Aki Kaurismaki, ou mesmo dos gestos contidos de Robert Bresson. Com um toque de humor.

4 Nota do Crítico 5 1

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