A Mulher de um Espião
Se você é um espião, sou esposa de um espião
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2020
“A Mulher de um Espião”, o thriller psicológico de fundo histórico que Kiyoshi Kurosawa dirigiu em 2020, marca um ponto de virada na carreira do diretor: é o seu primeiro filme de época – e que época, Japão pré-guerra – realizado sem os traços habituais que caracterizaram seus trabalhos, sobretudo no que se refere à presença do fantástico, do intangível – em uma palavra, dos fantasmas. Mesmo que o rótulo de “terror psicológico” seja redutor para descrever o estilo desse cineasta, é o corriqueiro. Pragmático e funcional, Kurosawa inscreve-se sem pudores na estética do “cinema de gênero”, de óbvio viés industrial, mas também ponto de partida de investigações audiovisuais profícuas e estimulantes. Seus personagens, sobretudo a partir do estupendo “A Cura”, de 1997, parecem pertencer a um mundo de solitários em busca de alteridades – inseridos nas estações de trabalho ou no ambiente caseiro, esbarram com fantasmas e duplos, tangíveis e intangíveis, entram em contato com os “outros” e se transformam. Em termos de economia narrativa, os filmes passam de arranjos mais ou menos convencionais de tempo e espaço para um embaralhamento de ações e situações – e o espectador despede-se transtornado e recarregado. Kurosawa – sem parentesco com o ilustre antecessor homônimo, Akira – é um dos realizadores mais inteligentes de seu país e dos mais atilados da cena internacional. Nascido em 1955, estudou sociologia em Tóquio e acabou fisgado pelas aulas de Hasumi Shigehiko, crítico de cinema erudito, um dos pioneiros na divulgação de Foucault e Deleuze no Japão. Familiarizou-se, entre outros, com a geometria dos enquadramentos de Hitchcock e as soluções de Ozu para descrever os ambientes internos das casas japonesas. Em seguida passaria ele mesmo a dar aulas, atividade que mantém até hoje.
Co-roteirizado por Ryusuke Hamaguchi (de “Drive My Car” e “Roda do Destino”) e Tadashi Nohara, dois ex-alunos de Kurosawa, “A Mulher de um Espião” exibe uma narrativa tensa: dirigido com a precisão habitual e politicamente delicado, conta uma história que pode empurrar o realizador para uma trincheira anti-militarista, algo que no Japão tem conotações profundas e não-triviais. O filme articula o suspense partindo dos clichês de espionagem – lealdade, coragem, segredos, sensualidade – e chegando ao aprendizado que a heroína Satoko (Yû Aoi, em atuação soberba) adquire sobre a limitação que os homens ao seu redor demonstram em entender suas potencialidades. A princípio subestimada – uma espécie de esposa-troféu, que se compraz em atuar nos filmes caseiros do marido Yusako – ela evolui para uma ardente colaboradora do projeto utópico que mobiliza seu parceiro, um rico comerciante de Kobe, cidade em que Kurosawa nasceu, arriscando seu bem-estar burguês e, no limite, a própria vida. O ano é 1940, e o Japão aderiu ao Pacto Tripartite com Alemanha e Itália: Yusako, preocupado com a escalada autoritária em seu país, decide partir para a ação, independente e quixotesco. Anuncia uma viagem de negócios à Manchúria, território chinês que o Japão ocupou em 1932, viagem que acaba se estendendo por mais duas semanas. Os pensamentos de Satoko, confusos e hesitantes, tendem a se transformar em suspeitas sobre a fidelidade do marido graças ao amigo de infância, Taiji, que reaparece na vida do casal como militar nacionalista em ascensão. Em paralelo com o jogo de ciúmes e mais central para o filme em si, a história alude à conhecida Unidade 731, um notório centro de pesquisa médica que os japoneses estabeleceram em Harbin, no norte da China, voltada a experimentos biológicos com prisioneiros de guerra, em sua maioria chineses, matando muitos no processo. E não é só isso: em vez de serem julgados por crimes de guerra, os pesquisadores envolvidos na Unidade 731 teriam recebido imunidade secreta dos Estados Unidos em troca dos dados que reuniram em suas “pesquisas”. Acredite, se quiser.
Para Kiyoshi Kurosawa, em primeiro lugar vem o “gênero”. “A Mulher de um Espião” – premiado com o Leão de Prata em Veneza – invoca o “gênero” thriller psicológico com fundo histórico. O método é o mesmo: não se trata de escolher um tópico filosófico ou humanista e depois escrever o roteiro – o “cinema de gênero” é mais fácil para a audiência entender, e a partir dele os temas aparecem e se desdobram. O elemento ficcional é sempre necessário para contar a história, mas o cinema é também o meio de captar a realidade circundante, no ato mesmo de filmar. Você começa com o gênero, que é ficção, e gradualmente se move em direção à realidade, costuma dizer o diretor. No meio do caminho, em algum lugar, descobre o filme.