A Misteriosa Morte de Pérola
Os duplos metafísicos
Por Fabricio Duque
Semana dos Realizadores
Exibido na Semana dos Realizadores, após ter passado pelo Festival de Roterdã, “A Misteriosa Morte de Pérola” (2014), mais um exemplar solo do cearense Guto Parente (membro da produtora coletiva Alumbramento), que co-dirige com Ticiane Augusto Lima, que por sua vez resolveu fazer o filme para que o “amor sobrevivesse” durante um mestrado na França (a diretora disse que ficou “assustada com as janelas e os silêncios” – “largamos o mestrado e fizemos o filme”), é pessoal e “bem” intimamente metafórico. Na verdade, a obra (“um filme de exílio”) representa uma estilizada ode ao amor, traduzida pelo cinema de gênero, invocando um terror sugestivo, de loucura consequente e crescente, que desperta medos e paranoia pela recorrente solidão e ausência. O casal atuou, roteirizou, dirigiu, editou, fotografou, produziu e sonorizou o longa-metragem (que foi lançado com sessenta minutos e agora estendido a setenta e dois minutos).
Ainda que esteja em território francês, perceptível pela linguagem de um professor nas aulas, “A Misteriosa Morte de Pérola” configura-se quase plenamente uma imersão portuguesa, advinda do cineasta Manoel de Oliveira e sua incursão em “O Estranho Caso de Angélica”, talvez pela casa de um orgânico renascentismo, talvez pelo propósito de construir uma naturalidade mais caseira e documental, potencializado pelos ruídos super-expostos que se antepõem à imagem. E/ou pela fotografia saturada a um tratamento apagado de casa antiga e escurecida, que explora ambientes, espaços, luzes, sombras e reflexos. Pronto, o público já foi imerso no medo.
Sem manipulações forçadas do susto. É um mal que ronda, que espreita, à moda de “Twin Peaks”, de David Lynch (com uma “pitada” de “Estrada Perdida”. Só que aqui a narrativa insere o elemento do VHS, sensação causal que já gera a iminência do perigo. De que algo incomum e surreal acontecerá. Não se consegue explicar, mas parece que há uma força sobrenatural que se apossa das imagens de videotapes (o Video Home System), como se fosse um episódio de “Além da Imaginação”. E/ou “O Iluminado”, de Stanley Kubrick. E/ou “A Hora do Pesadelo”, de Wes Craven. Nós espectadores percebemos também que não é preciso muito para que um bom filme surja, apenas talento. E isso definitivamente não falta nessa dupla de diretores, que “beberam” em Dario Argento, Mario Bava e Jean-Claude Brisseau.
“A Misteriosa Morte de Pérola”, conceitualmente autoral, é também uma viagem existencial, de filosofia terapêutica a fim de salvar casamentos. De um lado, uma mulher chamada Pérola que convive com os “fantasmas da solidão”, enlouquecendo a cada dia. Pela repetição cotidiana das micro-ações: de dormir, acordar, assistir televisão, esperar uma ligação, comer, sair para estudar e retornar de bicicleta. Um ciclo vicioso. Do outro, um homem, o ex (ou o atual?), já envolto na loucura, tenta gravar a memória da presença da amada, a trazendo de volta e recuperando sua imagem, que agora mascara-se. As “dobras da morte”. Sim, tudo é sobre a consequência da convivência. De quanto mais se está junto, mais a co-dependência estimula a mente a mudar padrões repetitivos. Assim é gerado deturpações, insinuações, dúbias fusões e obsessões. Com catárticas músicas clássicas.
Com a abertura das sinapses, lembranças e comparações com obras de arte perdem-se em um confuso e imagético quebra-cabeças, que desencadeia sonhos duplos (falso despertar) e a projeção do real com o não real dos poderes pré-cognitivos. Sim, a mente humana é uma caixa de surpresas. É um filme constituído de tempo e de memórias. De “luto” pelo passado deixado com apenas duas opções: “matar” (de performance personificada) o que se foi ou o que se está sendo no momento (a morte real). A imagem refletida no vidro da janela é a própria tensão. É inexorável, metafísico e influenciado. É o conflito do medo criado: instaurado e esquizofrênico. A loucura do terror. O pesadelo imaginado. Edgar Allan Poe disse que “Tudo o que vemos ou pareceremos não passa de um sonho dentro de um sonho”. Isso pode ajudar a entender se é uma realidade adormecida.
Em “A Misteriosa Morte de Pérola”, nós adentramos em uma “fenda do tempo”. Um portal tridimensional. Sensitivo, perseguidor, confuso, concretamente fantasmagórico e com um que muito intenso de “Caché”, de Michael Haneke. Pela contemplação do instante, quase catatônico e sem respiração. E quanto mais o filme surta, mais interesse fica, principalmente pelo simbolismo de uma imagem gravada “rebobinar” e “matar” a tragédia real. E por nos encantar com cenas pós-créditos de bastidores deste filme e que em certo momento gera a confusão por perder os limites da própria realidade com uma real ficção. “Nós criamos os muitos duplos de nós mesmos (assistentes) para se manter são e não brigar. Eram duas dimensões paralelas”, finaliza Ticiane.