A Metamorfose dos Pássaros
Memórias contra o tempo (ou mães-pássaros)
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2020
Assistir a uma nova obra do cinema português é embarcar em um sensível, espirituoso, nostálgico e melancólico manancial de definições sentimentais, entre o naturalista humor ingênuo e a coloquial poesia orgânica, gerando assim um metafísico balé das palavras. “A Metamorfose dos Pássaros”, da estreante realizadora Catarina Vasconcellos, não só vai além dessas características, como transborda a experiência do espectador, envolvido em uma atmosfera sensorial e etérea, como se adentrássemos na epifania construída da própria diretora, visto por ser um projeto pessoal-autobiográfico (uma carta-terapia-catarse de aceitação à mãe que virou “fantasma real”).
Exibido na mostra Encontros do Festival de Berlim 2020, e que agora integra a competição da edição online do Olhar de Cinema 2020, “A Metamorfose dos Pássaros” é um filme-livro. Um “doc-ficção”. Um “híbrido das formas”. Um documento-retrato de memórias (especialmente pelo formato da tela que lembra a uma fotografia de álbum de família) . Um exercício verbal amalgamado com a imagem estética, criando na percepção uma sinestesia viva, pulsante, doloroso, libertária, verdadeira e honesta, que expurga sofrimentos e lutos, os transformando em lembranças eternas jamais apagadas. Catarina, ao contar a história de sua mãe e de sua família, ainda que mude nomes (como o do pai – para não “confundir” o leitor-espectador) e “aumente pontos ao conto”, desconstrói a realidade documental em ficção-poesia, mergulhando sem redes de proteção aos “tesouros” e idiossincrasias da história percorrida, remodelada e de ressignificação subjetiva.
“A Metamorfose dos Pássaros”, produzido por Pedro Duarte e Joana Gusmão, busca todo o tempo reconstituir percepções adjetivadas. A narrativa não linear avança, desacelera e espera, conseguindo assim filmar o invisível. Aquilo que está por trás da existência das coisas e das pessoas. Não há como ser diferente nesta crítica, que precisa dialogar no mesmo tom do filme: uma fábula realista pautada na pureza lírica de suas narrações, personagens e integrantes do meio familiar exposto. Essas memórias, relativizadas em perspectivas únicas, conseguem embasamento para desenvolver livremente sua epopeia, quase como uma resignada liturgia (de lamento comportamental típico e cúmplice), respeitando o que foi e lidando com o que está sendo, como, por exemplo, a cena em que se tenta levantar uma árvore caída, simbolizando que por mais que esperemos um final feliz, a morte não nos atende com o retorno de entes queridos. Nós assistimos a um espetáculo de análises cognitivas e personalidades já constituídas. Esta crítica poderia listar trechos desse poema-vida-existência, de visceralidade impulsiva e linguagem pragmática, sim, poderíamos. Mas não. Qualquer trecho desmontaria o formal e vernacular quebra-cabeças, entre digressões, obras de arte, músicas, fragmentos, contradições do olhar e marcas da infância, tudo costurado com maestria disforme e descontínua, exatamente como são as memórias de todo e qualquer ser. Humano ou não.
Catarina Vasconcellos consegue fugir dos estereótipos e dos gatilhos comuns tão presentes quando se realiza uma obra pessoal e intimista demais (que mais parece um “diário polifônico”). Aqui não. O óbvio deu lugar à magia, impressa com cuidado e técnica. Sua mãe faleceu quando a filha tinha dezessete anos. E seu pai (Jacinto, mas na verdade Henrique, que desde a infância “sonhava em se tornar pássaro”) também perdeu a mãe, sua avó. Após a perda das duas, a diretora argumentou “A Metamorfose dos Pássaros”, referenciando as cinematografias de Manoel de Oliveira e Agnès Varda. As imagens de arquivo acalentam, protegem e eternizam a lembrança contra a passagem do tempo, cuja permanência perde contagem ao invocar os mortos, os personificando como turistas de uma viagem interplanetária, motivada pelo querer dos mais internos meandros da mente, quase de loucura permitida e compartilhada, ainda que se saiba (todos eles) que isso é uma defesa do sofrer. Tanto faz, deixa eu, já rebateriam os portugueses.
Ainda não se pode explicar a força que o cinema português tem. Talvez por sua antropologia visual de reflexões teóricas. Talvez pela auto-confissão não suavizada das fragilidades de si e dos (para) outros. Talvez pela metalinguagem inerente, em colocar o personagem real lendo o roteiro do próprio filme que está sendo feito no momento. Há uma complexidade narrativa traspassada por uma simplicidade altamente ultra-naturalista. Sim, não é fácil traçar linhas sobre “A Metamorfose dos Pássaros”, que representa o primeiro longa-metragem de Catarina (após o primeiro curta “Metáfora ou a tristeza virada do avesso”), que levou seis anos para ser concluído e que venceu o prêmio Fipresci no Festival de Berlim 2020. Difícil após assistir ao filme em Berlim (considerado um dos melhores), e ainda mais na segunda conferida no Olhar. A resposta é porque precisamos incondicionalmente senti-lo e o libertar de toda e qualquer definição. As narrações e suas palavras não só nos alimentam, como também nos estimulam a curar. “Todo este lado que vem mais das artes plásticas foi muito importante e o filme não podia ter sido construído noutro sítio. Foram as soluções que encontrei para dar resposta a coisas que eu sentia”, finaliza a diretora.