A Luz de Mario Carneiro
Olhares autofágicos
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Brasília 2020
O ditado popular prega que “água demais mata a planta” e que luz demais pode cegar. O diretor de fotografia (“não um técnico”), cenógrafo, montador e cineasta Mario Carneiro, um dos responsáveis ativos pela estética diferenciada do cinema a partir do Cinema Novo, seguiu à risca a sabedoria empírica. Dosou, de forma equilibrada, orgânica e internalizada, invenção e técnica. Arquitetura e iluminação. Pintura e sinestesia ocular, entre movimento estático e liberdade transgressora, esta que rompe a própria sensação do olhar. Neste ano, estranho e distópico, Mário Carneiro entra em cena como protagonista de uma história: A História do Cinema Brasileiro, sob “A Luz de Mario Carneiro”, exibido na mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. O documentário ainda enaltece a metalinguagem, analisando o cinema pelo próprio cinema.
Dirigido por Betse de Paula (de “Celeste e Estrela”), “A Luz de Mario Carneiro” (2020), gentilmente cedido pelo Canal Curta!, busca a essência arqueológica da memória. De um pensamento mitigado de moralismos e defesas. O jazz do início, à moda de New Orleans com a abertura de Saturday Night Live, complementa nossas reações saudosistas às imagens de arquivo. “Artista não deve pensar pensar demais que atrapalha”, diz-se. Este é um filme-quote. Frases que definem com precisão espirituosa e atitude confiante da permissão à vulnerabilidade do criador. “Quando pego a câmera não sabe direito o que estou fazendo”, diz. É um processo de pintor com visão da psicanálise. Um escultor que inventa no momento da criação. Tudo para “perder o medo do cinema e das câmeras”. Nós podemos inclusive inferir ao filme “David Lynch – A Vida de Um Artista” (2016), de Jon Nguyen, Rick Barnes, Olivia Neergaard-Holm.
O documentário pode ser considerado como uma aula de cinema. Por ouvir que “qualquer coisinha que se mexe, mexe com tudo” e/ou que “artista era o fim da picada”. A narrativa de “A Luz de Mario Carneiro”, uma curadoria de olhares e percepções, conduz-se todo por arquivos. Entrevistas do personagem principal homenageado, fotos e filmes em que trabalhou (dirigiu e que geraram referências). O roteiro de Marta Luz (chamada pela diretora de “bordadeira”) tricotou teias de conexões e curiosidades-causas, como a história da câmera do realizador italiano Federico Fellini. “O impossível que acontece”, entre “premiados na Europa que voltam com meio caminho andado” e “filme autofágico”, “a câmera que se comeu para fazer um filme” e de “conselhos”: “Se sentir que sua estrela não tá funcionando naquele dia, não vai”.
“A Luz de Mario Carneiro” é uma obra ouvinte. Nos transforma em alunos. Sobre um “cinema que precisou passar por todas as provas da época”. Os espectadores reveem clássicos estudados por cenas. “O Padre e a Moça”, de Joaquim Pedro de Andrade, também mencionado em “Macunaíma”, outro filme-metalinguagem deste Festival de Brasília; Eduardo Coutinho, Joel Pizzini, entre tantos e tantos nomes importantes e icônicos de nosso cinematografia. “O pouco recurso” aumentava a “invenção”. Há também a figura do Fakir, abordado por Helena Ignez em seu documentário mais recente. “O artista é uma maldição bem-vinda”, diz. E “quando o cinema se mecanizou, perdeu a graça da espontaneidade”. Este também é um filme-cabeceira. “O importante é o que é dito; enquadramento se vê depois; um artista reinventa o mundo”, complementa o “fotógrafo do olhar” (“Minha luz é a luz de Deus”) sobre a urgência em filmar o enterro de “Di Cavalcanti”, de Glauber Rocha.
A obra em questão aqui é uma epopeia de cinefilia metafísica, porque usa o etéreo realista a fim de personificar a palavra definidora como persona. Nós somos embarcados em uma cápsula do tempo. De reencontrar a nostalgia apaixonada das motivações. Essa arqueologia-pesquisa, cavada à fundo por Lais Rodrigues e Mario Caillaux, constrói uma experiência imersiva de se embrenhar nas entranhas-bastidores do Cinema Brasileiro. Era sim um sinônimo de invenção, mas principalmente de discurso em potência comportamento-social, transmutando subjetivismos em necessidades urgentes, até porque tudo na vida, inclusive suas histórias, tem data de validade, especialmente no país tupiniquim em que vivemos. “A Luz de Mario Carneiro” transmite sua força por essa quebra de limitações. Libertar o cinema de seus moralismos e seus conservadorismos, visto que todo pensamento hesitado de pensar mata mais um pouco a arte, que deve ser plena em sua existência. A luz de Mário Carneiro é ao mesmo tempo uma vanguardista proposta de olhar ao Brasil. De nunca segmentar e sempre unificar.