A Fuga da Mulher Gorila
A metáfora da vida
Por Fabricio Duque
Há muito, o cinema deixou de ser apenas uma fantasia inalcançável para se tornar um retrato ficcional da própria realidade existente. A máxima “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” de Glauber Rocha atiçou os jovens a conseguir seus cinemas possíveis. Uma contemplação expressiva das emoções. O que se via era o mais orgânico dos elementos humanos.
O filme de estreia de Felipe Bragança e Marina Meliande, imbuídos da força do movimento coletivo (que acredita na autoralidade conceitual da obra), “A Fuga, a Raiva, a Danca, a Bunda, a Boca, a Calma, a Vida da Mulher Gorila”, ou apenas “A Fuga da Mulher Gorila”, representa uma imersão na liberdade total da criação, que traz potência e passionalidade à forma conduzida. O longa-metragem, um narrativo exercício de linguagem, pulsa a essência da sétima arte, desconstruindo olhares e percepções de seu público.
“A Fuga da Mulher Gorila” (2009) acontece pela união. Pela despretensão de sempre “estar atento e forte”. Nós mergulhamos e uma poesia coloquial, de poetas malditos e à margem, que largam tudo para viver de suas paixões. Não se pode separar o joio do trigo, tampouco os realizadores e colaboradores de suas personagens (duas irmãs, as atrizes Morena Cattoni e Flora Dias), que à moda viajante de “Sem Destino”, de Dennis Hopper, e que lembra principalmente “Estrada Para Ythaca” (2010), dos Irmãos Pretti e Primos Parente, aceitam a cada dia o desprendimento da própria realidade. Há um que de “Na Natureza Selvagem”, de Sean Penn, por querer a sensação não pressionada da vida aprisionada da cidade grande.
O filme, de viagem, por capítulos (quase spoilers direcionados por interferência-metalinguagem) e pelo lúdico circense, de atmosfera submundo e interiorana, gera a pausa do tempo para assim captar o que há além do motivo da escolha à vida hippie e limitada, nesta musical e mambembe experiência de estrada. De jornada simples. De pular de lugar em lugar levando a apresentação do “terrível” show da Mulher Gorila. De uma “doce e frágil donzela” se transformando em se transformando em “uma besta aos olhos de todos”, com a força de um animal (o simbolismo feminino que liberta a mulher do medo de ser mulher). “Que eu não vou morrer mais por ninguém. Espaçonave explodiu e eu comi amor demais”, canta-se entre as dificuldades físicas e escatológicas do caminho.
“A Fuga da Mulher Gorila” é um Cinema Novo contemporâneo. Um cinema possível. Um cinema direto que convida o público não ator. Uma nova onda impulsionada pelo querer absoluto, aquele que não se consegue esquecer até que esteja pronto e realizado. É a vida traduzida em micro-ações observadas e estendidas, em trilha sonora de videoke de bar, como a co-dependência espontânea de suas protagonistas, em atuações irretocáveis. Cavi Borges disse certa vez que talvez dinheiro demais para fazer um filme atrapalha o que a obra é de verdade. Sim, este corrobora a teoria, especialmente por sua estética de sobrepor imagens (lembranças ou premonições), quase cosmicamente fantasmagóricas. É a metáfora da vida. Que se passa em passageiros postos de gasolina.
A estrada vai se naturalizando. Um intruso andarilho (o ator Alberto Moura Jr.) é inserido na história e ganha status de desejo-oportunidade. Banhos no rio. A câmera filma de longe, quase escondida, a vida do interior e sua tipicidade. Depois as ruínas. A praia e o barulho das ondas que ensurdece os diálogos. A revolta e uma fuga-descanso. Tudo alcançado pela Kombi e sua gasolina (“Para ir onde?”), que transporta esses “três mosqueteiros” (“raiva, saudade e coração bom”) em uma imagem de sonho-devaneio. É real?
Aos poucos, nós montamos as peças do quebra-cabeças e descobrimos dramas ainda mais reais e possíveis. É a substituição. Da prisão pela liberdade. Aceitando que abandonar é a única solução decente e “covarde” (“Da Guanabara não passa” – em seus restantes limites e fronteiras morais). “O mundo é mau e bonito”, diz-se, sabendo que a despedida é inevitável e o retorno inadiável. “Casinha de veludo protegido da tristeza. Meu mundo na acabou na quarta-feira”, canta-se mais um pouco para poetizar o silêncio. Uma delas, a irmã, precisa ser normal na cidade. Despertar da fuga (a praticidade da decisão) com o confronto do contato com o filho e com seu ex (o ator-realizador Pedro Freire), ainda que com “vinte e duas cartas em um ano”.
“A Fuga da Mulher Gorila” é o desligamento da ilusão da realidade em uma selvagem natureza que procura a sobrevivência da essência. Com as músicas “Teimosia”, escrita por Felipe, e “Moonriver”, que encerra esta pequena pérola de oitenta minutos. Uma viagem de Kombi durante oito dias, entre o Rio de Janeiro e Campos-RJ, em março de 2008. Concluindo, o que faz deste filme ser especial? A maestria está em libertar a forma dela mesma.