A Flecha e a Farda
Memória e corpo
Por Vitor Velloso
Festival Panorama Coisa de Cinema 2021
A História da América Latina é um fuzuê entre o extermínio dos povos nativos, a colonização, a dependência, a escravidão, o processo eugenista de uma burguesia em ascensão, violência, repressão… A lista não tem fim. O documentário de Miguel Antunes Ramos, “A Flecha e a Farda”, assume uma das violências da história brasileira no século XX como protagonista.
O projeto compreende uma unidade espaço-temporal entre esse passado em material de arquivo e o presente que carrega as chagas dessa construção histórica violenta. Componentes que expõem a decadência da história farsante que a burguesia busca sustentar, surgem aqui como exposições didáticas de uma realidade que foi perdendo a materialidade através da diluição que a mídia busca fazer. O pau-de-arara, arma covarde de tortura, não é apresentado como “elemento histórico” e sim como um instrumento que vitimou aquelas pessoas presentes no arquivo. Uma parte da repressão, dos crimes que a ditadura militar brasileira cometeu contra o país. Chamar de Revolução deveria ser crime.
A estrutura de “A Flecha e a Farda” prioriza o entendimento da materialidade dessas memórias a partir dos corpos de seus personagens, que narram e relembram uma geografia que está a serviço de classes demarcadas pelo golpe militar, encomendado pelos imperialistas. A revisitação dos lugares, os diálogos que relembrar o período de opressão e tortura acaba cruzando com o atual momento onde não há um grande apaziguamento nas políticas públicas para a proteção dos nativos, vemos um poder desencadear uma outra onda de reacionarismo, que visa dar prosseguimento ao processo eugenista colocado em prática pelos norte-americanos.
A consequência é desastrosa e parece fundamentar uma manutenção do assassinato em massa. O cineasta busca um projeto que faça uma crítica à própria relação com a imagem e com a feitura cinematográfica. Essa dinâmica interna da obra, que tenta encontrar “significações” a partir da forma, é uma força que vai sendo diluída por uma cadência entre os confrontos da realidade do material de arquivo e da filmagem do presente. Os relatos rompem uma ideia de mise-en-scène que fecunda o espaço e o tempo no próprio Brasil, uma materialidade que apoiada aos determinados contextos promove um arranjo ímpar no barato todo. O documentário vai encontrando seus espaços na montagem e vai articulando uma compreensão da Guarda Rural Indígena e todo o “acervo” que envolve o momento. Contudo, seus personagens parecem reorientar constantemente o “fluxo” das ideias para um panorama distinto.
Não existe particularmente uma transgressão em “A Flecha e a Farda” existe o desejo e uma concepção de encenação ou registro, em confronto com a realidade diante da própria projeção. Não à toa, o longa tateia um complexo jogo imagético onde a captação é uma espécie de assimilação do discurso para si e vai frustrando algumas investidas prévias do documentário. O exercício mostra que a potência dessa proposição é uma anti-fórmula, uma dialética baseada em um axioma entre classes que não formaliza aquele desejo primário. A excelência do acontecimento está na própria frustração encontrada aqui, pois o centro da imagem torna a ser um Brasil que muitas vezes não orgulha, porém busca no método uma consciência Histórica que tenta romper alguns grilhões da burguesia anuladora.
Alguns dos questionamentos norteadores do filme possuem uma resposta amarga, revelando uma verdade pouco adjetivada. Se o processo do diretor era a desconstrução de toda uma ideia de progresso na estrutura, o longa deve ter sido um batizado traumático. Tal como a História do Brasil, o desvelamento são rupturas agressivas de um imaginário já estabelecido que consome a o tutano e corrói esperanças. Não à toa, recentemente as políticas de embate ao reacionarismo estão proclamando uma afetividade interna. Questionando métodos de enfrentamento direto com as repressões do Estado.
“A Flecha e a Farda” é um daqueles filmes que fica conosco por algumas horas após o fim da projeção. São diversos levantamentos possíveis que o espectador poderá fazer aqui, mas o tom reflexivo pós-sessão deve ser predominante.